Primeiro
O toque mesmo nas coisas para lembrar as mãos da arquitetura limpa daquilo que o mundo gestou. A mão limpa, cartesiana, reta pelas coisas para tirar o pó sobre os nomes sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria e tocar outra vez como no Dia Primeiro algo dos nomes que vibre. * Aquilo que me sou não me é nunca. Pensando o que serei no escasso espaço de mim, não sei se penso e sou aquilo ou se, pensando, passa o tempo e passo – se passo e já não sou o que pensara, nem o que penso agora e que já passa. Não sei se algum momento embosco aquele que vejo ou se descubro-me sua caça. * o amado que toca os pulsos mornos de seu amado e o braço e as mãos tremulargênteas e o rosto toca e o sexo quente e afiado o amado que toca os pulsos mornos de seu amado e sabe de repente o que é um ensolarado riso e a noite antiquíssima que o olha de volta. * descobrir as palavras eu te amo pesar na mão cada uma, medir sua massa numa mão n'outra articular a língua os lábios dentes como pela primeira vez um homem o fez um homem o fez a outro homem testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala testar cada som e sombra que acaso fique nas arestas do a, do e descobrir as palavras eu te amo e a violência que é usá-las. * é lícito um poema onde ecoem passos de um único homem ou de sua sombra os passos? é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um pátio ainda mais? lícito que água ainda não convexa de toques nem de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água reste? ecos, passos, sombras, pés descalços, toques? é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra: lícito? é lícito que haja o que haver em versos como estes se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo? * mãos que levantaram-se e caíram no fluir inadiável do tempo e dia por dia ano por ano escavaram o tempo até aqui chegarem a estas minhas mãos morenas sob este céu transparente sobre este teclado mãos que levantaram-se e caíram nos afazeres e no fazer do tempo que ele é por elas feito e elas por ele engolidas o trabalho comum que é o tempo esta conta de vidro mão por mão gesto por gesto feito e abandonado como as ondas consecutivas na praia como o fio que se tece só em parte tempo – minhas mãos aquelas também sob estas. * Canto de dissolução Sepultadas no tempo deitam-se as coisas todas, que já nem coisas são, mas memória de coisas. Sepultados no tempo afundam-se os rostos todos, ou quase todos, e as datas, risos, gostos. Sepultadas no tempo jazem as nossas vidas, num tempo em que não são nem gozo nem ferida. Sepultados, enfim, no tempo, todos nós. Onde não há nem feito, nem pessoa, nem voz.
1 Comentário
Lolita Beretta
18/9/2018 16:45:43
Gosto muito desse canto de dissolução! Me lembrou uns poemas muito bonitos do português Nicolau Saião que encontrei muito por acaso, em um livrinho que não lembro o nome.
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