Acredito que antes de qualquer sentimento de criação artística ou processo, me reconheço de onde vim e de onde falo. Eu sei que por ser uma mulher branca e mesmo que, bissexual, não tenha sofrido um terço dessas contradições e desigualdades se analisarmos o escopo social de grande parte da população brasileira com marcadores sociais da diferença explícitos como raça, etnia, classe social e o gênero. Mas questões me afetam muito porque eu faço parte de um todo-social, e a minha trajetória perpassa muitos campos dessas vivências. Recentemente, uma das artistas e poetas que mais gosto, a Mariana de Matos, fez uma exposição em Recife e um de seus trabalhos dizia "Considere meu corpo um aliado". E é assim que me percebo, como uma aliada que utiliza a linguagem artística pra tentar transmutar todos esses sentimentos de dureza da realidade que sofremos. E claro, para tentar expulsar do meu corpo todas essas violências que nos acercam. Eu sinto muito. E nesse sentir, busco - como quem busca algum ponto para assentar - uma justeza das minhas imagens, do meu trabalho. A arte opera diretamente sobre meu ser e meu corpo e os uso como instrumentos.
O processo de pesquisa e criação da série "Vândalas Mascaradas", por exemplo, é muito significativo dentro das minhas inquietações artísticas. Por vezes, acho a série deveras figurativa, muito desenhística e penso nas tensões e ocupações da linguagem do desenho dentro da arte contemporânea. As vândalas chegaram como uma consagração de seres, como símbolo de transcendência animal do corpo e do que vem a ser o mito "da mulher". De maneira muito pessoal, pois nasci em dia 5 de janeiro, dias em que se comemoram as Folias de Reis no Brasil, uma manifestação cultural muito comum em quilombos e cidades do interior. A festa foi de certa maneira apropriada pelo catolicismo e é uma festa cheia de pessoas com máscaras, seres fantásticos e até diabólicos. De maneira onírica, as posturas corporais e os objetos que cada uma delas carrega consigo - além do pensamento do conjunto de cada uma dessas personas - representações do biopoder feminino direcionada pela experiência entre máscaras&bruxas e simbologias&paganismo. Na série, me alimento desdes badulaques vendidos em camelôs, funk, memes. máscaras chinesas, africanas, rituais e grafismos indígenas. A pesquisa artística das Vândalas Mascaradas são presentes com seu ocultismo, vagina em espectro e bumbum no chão. São vândalas e por isso enfrentam o disciplinamento de corpos, a caça às bruxas e a propriedade privada - do cercamento da terra ao cercamento dos corpos. Ainda há muita coisa em que quero mergulhar e pesquisar sobre as máscaras e sobre as vândalas. Pode ser que tudo isso caia por terra (que é de onde elas vieram). Para essa nova série, me inspirei em Tuíra Kaiapó como entidade central. Ela está com grafismos Kaiapó de uma mulher em fim de resguardo e que cria uma criança recém nascida. Dois momentos que significam muito nesse atual momento histórico para as mulheres dos vários mundos possíveis. Me inspirei nas mulheres que estão comigo, me inspirei em Marielles, Theusas, nas mulheres zapatistas e em nas minhas amigas indígenas, negras e brancas. No mesmo fluxo, minha obra "Meu corpo é minha mátria e está sempre mudando", da minha exposição individual “MATRIA”, fiz depois de viver na carne alguns processos de violência na Europa. Foi na Europa que eu percebi que meu corpo é realmente não regulado, eu me vi latina e vi que muitas vezes o estereótipo de ser uma mulher brasileira passa à frente de outras questões, por exemplo. Como "monstras-híbridas", fazem parte do meu biopoder e do biopoder das mulheres que me cercam e das que vieram antes de mim. Um biopoder da natureza também. Em aceitar a nossa natureza e acolher luz&sombra. Uma força bem arquetípica mesmo, das máscaras que vestimos às roupas que despimos. Nesse mundo patriarcal contra a autonomia e a felicidade de nossos corpos, as "vândalas mascaradas" estão aí pra descolonizar, se exibir, entre mulheres. Nós queremos nossos corpos vivos. Não só vivos porque estão sujeitos às violências, mas vivos porque ele tem cheiro, ele transpira, ele dança, sabe? O corpo sente. Todo o corpo é zona de prazer. Particularmente, eu sempre achei meio esquisito atribuirmos ao coração todas as manifestações de sentimentos, enquanto é a pele que arrepia e transmite ao cérebro as sensações básicas de quente e frio e até as pulsantes, como o tesão. As "vândalas mascaradas" então vêm dessa festa do corpo que já transmutou as violências e agora quer viver.
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Abril 2021
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