hoje sonhei
que tinha o corpo inteiro tatuado propositadamente para disfarçar as marcas feias (marcas de quê?, perguntava-me, mesmo no sonho, marcas de quê?) depois de repente estava nua no meio de um corredor de supermercado um velho asqueroso tocou-me gritei, pedi para por favor parar ele não parou / mas riu-se bastante “eu páro quando quiser”, respondeu as pessoas olharam mas não agiram tentava vestir-me mas o vestido estava rasgado e não entrava no meu corpo ou o meu corpo não entrava nele (eu continuava a perguntar-me porquê) pedia ajuda passaram três polícias / jovens brancos bem parecidos / ficaram a olhar de longe, mas em vez de se aproximarem comentaram de longe as minhas tatuagens elogiaram o corpo o mesmo corpo que eu segundos antes naquele sonho odiava de raiz, com todos os seus desenhos que serviam para disfarçar as cicatrizes (marcas de quê, afinal?, continuava a perguntar-me) eles examinavam-me sem se aproximarem e eu pensava: ACAB - all cops are bastards AMAB - all men are bastards ATAB - all tattoos are stupid a minha cabeça continuava a elaborar acrónimos intermináveis acordei cansada do silêncio nós cerramos os olhos mas vemos (às vezes somos a força policial de nós mesmas) dizemos desconhecer a origem deste nojo desta tristeza fazer de conta é mais fácil mas nós sabemos ele sabe tu sabes eu sei são quatro da tarde e ainda choro as notícias há gatilhos fodidos a humilhação de uma de nós serve na pele de todas brasileira portuguesa moçambicana inglesa chinesa nós somos uma uma é todas esta garganta apertada que não sabe se grita se se rasga há este nó que nunca se desfaz: a violência é uma violação o medo da violência é uma violação: ter medo por si só é já uma forma de estupro ACAB / AMAB / ATAS / os acrónimos intermináveis do medo nas paredes da rua da minha cabeça (a mãe da mariana relatou ter encontrado a filha semi-desmaiada com um vestido que fedia a sémen, e a expressão que relatam as últimas seis palavras da frase anterior não me saía da cabeça nem enquanto dormia, talvez fosse esse o vestido que não entrava ou talvez eu não quisesse entrar nesse vestido: pelo menos nos sonhos temos o direito da recusa a vestir algo que fará de nós vítimas imediatas - e não falo do vestido: falo do macho, eu não quero (re)vestir mais machos eu quero que eles se acanhem na vergonha do medo que provocam eu quero reparação eu quero mais do que justiça eu quero caminhar à noite sozinha) a violência a normalização da violência a normalização do silêncio se não ficares calada és uma puta uma louca e desfazem-te - em casa, trancada, ou no tribunal em frente às câmaras - mas se ficas calada: começa o relógio decrescente para a auto-destruição este sonho tem tantas interpretações as tatuagens como cicatrizes o querer cobrir-me e não poder querer protecção e não ter o desespero da nudez forçada no meio do supermercado as interpretações, sendo honesta nem são tantas assim: a violência / é medo / o medo / é uma violação uma violação / é um pesadelo / o pesadelo é um supermercado e um supermercado é um inferno é um inferno é um inferno é um inferno é um inferno é um inferno é um inferno.
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Histórico
Março 2021
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