JUVENTUDE Caía-me sobre o rosto e os ombros o peso de uma coluna de fogo: eu não recuava um único passo e amava o que ficava pelo caminho – escombros, esquinas calcinadas, o muro caiado e roído onde a luz escreveu o seu nome. * O FRIO ME PARECE SUJO O frio me parece sujo e se prende à epiderme como uma cicatriz de sal ou uma carícia de um vento espesso e venenoso. Acreditar no iceberg – na sua fúria branca e no seu método assassino – é um pouco fantástico; como se uma aurora boreal se erguesse sobre esses quintais com girassóis plantados em latas de tinta enferrujadas e agora mortos – alguns caules secos entre torrões de areia ou blocos de uma terra cinza. Remexer o fundo dos vasos não vai resultar em nada: o tesouro é o que restou de cigarros fumados pela metade e estilhaços de um prato que não me lembro quando quebrou. * DOMINGO (entre Pina e Pizarnik) O domingo: pálpebra de cinzas que lenta se fecha deixando entrever uma última e mortiça claridade. Venho por estas ruas de subúrbios, por estes pavilhões de casas destruídas, por esta zona fronteiriça que mais parece um limiar de trincheiras. Há a suspeita de um pesadelo duplo, que aterroriza tanto aquele que sonha como aquele que é sonhado. Quanto a mim, não sou um, nem outro e, no entanto, pode ser que seja ambos e nem pelo tato conheço meu rosto. Sou aquele que segue opaco pela rua crepuscular, o órfão que vai de porta em porta forçando fechaduras e também aquele que atrás de cada porta escuta alguém a forçar as fechaduras e que tem poucas certezas: hoje, ninguém ressuscitará; para além da janela aberta há uma parede; o meu corpo é a migração dos pássaros entre ilhas de fome. ![]() A ilustração foi concebida a partir do poema "DOMINGO (entre Pina e Pizarnik)" para A Bacana.
0 Comentários
Enviar uma resposta. |
Histórico
Janeiro 2021
|