dei o que tinha
1. te dou de comer na palma da minha mão. é ancestral o gesto de agachar, se reconhece: me curvo ao chão então, você vem, faminto. não distingue entre o que é comida e quem eu sou. penso domar a fera, as pontas dos meus dedos se vão. não distingo se é dor ou prazer me transformar em seu alimento. voltarei amanhã, você sabe. 2. sequer havia luz, mesmo assim, aprendi a te alimentar primeiro. antes de qualquer verbo ou nome: não havia chamado, ainda não há. embora sequer houvesse luz e tendo, ainda, olhos preservados por você, me guiei pelo cheiro da sua boca entreaberta. agachado, com minha pata de bode, te dou de comer antes de seguir, veloz. 3. esse chão criamos nós a partir do nada que havia: era apenas linguagem. na palma da sua mão dei o que eu tinha, cuspi a palavra terra que você moldou com sua saliva. fez-se lama. nomeamos assim, essa porção ínfima onde deitamos. 4. quando forte, você se antecipa. reproduz meus gestos com uma velocidade maior. trama uma fuga. quando você passa, eu lanço a pólvora. o fim te alcança ainda preso a mim. aqui, agora, explosão diante dos nossos olhos. 5. você escancara essa boca de mundo, tão vazia de dentes, só saliva e oco. você escancara essa boca sobre um corpo crescido do chão, engole tudo enquanto o lodo escurece o que se quer pés. aguardo o que virá: língua, voz, manhã. 6. sobre a lama onde deitamos, passou tempo. confundimos passado presente futuro: aparentam ser o mesmo. na lama onde deitamos, criaram-se frestas, nelas, imaginamos caminhos. surgiram tantos outros iguais a nós. abri uma encruzilhada e te coloquei no meio. de costas, esperei que seguisse. 7. conforme você se afasta um novo dicionário adentra a boca. eu não me viro: enxergo o futuro às minhas costas. de cada verbete engolido você cospe a própria matéria. com os seus passos, vi surgir o vazio. 8. não calculei a medida do quanto permanecer imóvel. olhos fechados mãos fechadas segurando tudo que não existia. enquanto eu me escapava. este estalo inaugurou algo novo: essa dissolução. me tornei poeira, depois de você.
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Histórico
Março 2021
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