Recensão a "Os crimes inocentes" (Lisboa: Planeta, 2018) de Gabriel Magalhães, por Francisco Topa23/7/2019 Dizem os especialistas – e parece fácil confirmá-lo empiricamente – que é recente e pouco expressiva a presença do romance policial em Portugal. Segundo Maria de Lurdes Sampaio, que fez uma tese de doutoramento sobre o tema[1], “Se tivermos em conta que os ingredientes de mistério ou de crime também não são por si só, isoladamente, traços definitórios suficientes, podemos afirmar, sem reservas, que até aos anos de 80 do século XX, é impossível falar de um romance policial português”[2]. A explicação estaria no facto de o género ser tido como estrangeiro e menor. Seja como for, num país a que não faltam crimes, nem criminosos, nem detetives, nem – sobretudo – consumidores ávidos da espuma que os rodeia (aspeto aliás trabalhado com perícia no romance de Gabriel Magalhães) seria uma questão de tempo até o género se afirmar, embora sem o vigor que o caracteriza noutros países.
A estreia do nosso autor no policial talvez não chegue a ser uma verdadeira novidade, na medida em que ele já andara próximo do género num romance anterior, Restaurante canibal, de 2014[3]. Há de resto uma relação próxima entre Crimes inocentes e muitos dos numerosos e diversos livros de Gabriel Magalhães, seja ao nível das ideias, seja no estilo e, acima de tudo, na maneira de ver e estar no mundo. Ambientado no Portugal da troika, o romance acompanha um conjunto de estranhos acontecimentos ocorridos no Museu dos Coches, em Lisboa, em abril de 2015: a morte de um guarda trespassado por uma lança, a morte da diretora e de uma das técnicas, o suicídio de outro guarda e, last but not least, o desaparecimento da cadeira de que teria caído Salazar em 1968. Mas para além dos crimes (que neste caso são inocentes), o policial necessita também de um detetive que, através de uma estratégia mais intelectual do que propriamente policial, vá juntando os dados, reunindo os sinais que os outros deixam escapar, até chegar ao esclarecimento total do(s) mistério(s). Neste caso trata-se de uma trabalhadora precária do museu, Rosário do Amaral, que substitui até 26 de abril uma técnica em licença de maternidade. Logo por aqui fica a suspeita de que a detetive é uma espécie de alegoria da História, com maiúscula: a que fica depois da festa, para arrumar a sala e fechar as contas. Nascida em Aveiro, educada na Bélgica e regressada a Portugal para cursar História em Lisboa, Rosarinho não é apenas a representante da nossa jovem geração de precários ultraqualificados: é também a imagem da complexidade do emigrante, que Gabriel Magalhães tem explorado em alguns dos seus brilhantes ensaios sobre Espanha e Portugal, tanto em livro quanto nas crónicas que escreve para La Vanguardia. Nas palavras do narrador, “Percebeu que nunca se volta completamente quando se volta. Se residirmos no estrangeiro bastante tempo, a nossa pátria passará a ser algo a meio caminho entre duas nações que nos explicam: um sítio em que quase ninguém habita.” (71) Mas, para além disso, que já não é pouco, a figura da protagonista serve pelo menos duas outras interessantes estratégias: por um lado, permite a apresentação de um olhar por assim dizer estrangeiro sobre Lisboa (e, de certa forma, sobre o próprio país); por outro, justifica uma espécie de homenagem a uma das grandes figuras do policial, o belga George Simenon, criador da figura do Inspetor Maigret, que – como veremos – acaba por contribuir decisivamente para o esclarecimento do título e para a determinação do sentido do romance. É esta figura aparentemente frágil – uma jovem mulher algo deslocada, precária, a dias de ser despedida – que se afirma como heroína de Crimes inocentes, testemunha e agente de um 26 de abril mais simbólico do que efetivo. Com inteligência, paciência e método, consegue provar que todos os estranhos acontecimentos foram crimes inocentes, isto é, nem bem crimes nem bem inocentes; ou ainda, mortes sem um agente explícito e sem uma intervenção pessoal que permita responsabilizar alguém em concreto. Isso não significa porém que não haja um responsável. Na linguagem futebolística que nos domina, podíamos falar em sistema; na linguagem mais explícita (mas também mais doce) de Gabriel Magalhães, trata-se do estado, do país, da nação, da pátria. Já em 2014, na frase de abertura do seu ensaio Como sobreviver a Portugal continuando a ser português[4], escrevera o autor: “Às vezes, parece que o nosso próprio país nos quer matar.” (9). Agora di-lo de outra maneira pela boca de Rosário do Amaral: – Reparem que, na morte do Santos, estão todos os infelizes de Portugal, meio aniquilados pela própria nação. Na de Ricardo Matos, todos os que são cuspidos para forma e mordidos cá dentro, quando voltam. Nas mortes da doutora Constança e da doutora Cesaltina, vemos as nossas suaves guerras civis, seja por um empreguinho do Estado, seja pelo nosso naco do orçamento, seja pelo poder em Lisboa. Portugal mata, ai mata, sim senhor. (371) Há nisto uma visão consistente de Portugal e da sua sociedade, a de hoje, mas também a de ontem e a de sempre. Essa visão assenta, por um lado, na imagem da cidadela, que no romance é verbalizada pelo diretor interino do museu, Rui de Mascarenhas, do seguinte modo: “O cerco de Lisboa, acontecido em 1147, nunca mais acabou.” (296) Numa passagem prévia, o narrador, captando o pensamento de Rosário, escrevera algo de semelhante: “O duelo entre Constança de Noronha e Joaquim Malaquias tinha sido mais um embate de uma longa lista de guerrilhas entre os que vinham ao assalto de Lisboa e os que já lhe habitavam as ameias e a torre de menagem.” (208) Quatro anos atrás, no livro de ensaios referido, Como sobreviver a Portugal continuando a ser português, já Gabriel Magalhães apresentara como uma das maiores derrotas desta nossa IIII República essa questão da cidadela: “É como se, nas alturas mais altas do país, existisse uma cidadela que tem muito de castelo de senhor feudal: um âmbito privilegiado, com muralhas, onde não entra quem quer.” (27) A condição forasteira de Rosário permite ao autor desenvolver outros aspetos dessa visão, designadamente ao nível das relações sociais. É o que acontece com a referência ao exame que uma antiga diretora faz à protagonista: “houve uma inspecção ocular, apenas uns segundos, esses terríveis três segundos em que a pupila da aristocracia lisboeta decreta o estatuto social do interlocutor.” (110) Ou ainda com a abordagem de uma espécie de novo-riquismo cultural patenteado pela figura de Joaquim Malaquias: “O hall de entrada dava-nos um murro de cultura no estômago.” (197) Compreende-se assim o sentimento duplo da protagonista: Uma pena que era desprezo sem deixar de ser pena. Porque aquele homem se rodeara de acessórios, que no fundo eram amuletos. (…) Tudo isto era um modo de ele dizer sim a si próprio, se por acaso Lisboa lhe dissesse que não: algo que esta cidade faz com frequência a gentinha que venha de Mirandela. (201) Outro elemento importante da visão de Portugal e da sociedade portuguesa tem que ver com a descolonização e com os chamados retornados, questão introduzida através da figura de Ricardo Matos, um jovem poeta inovador com crescente prestígio, obrigado a sobreviver como guarda do museu: “Esse, coitado, já estava morto quando cá regressou, viajando nesse enorme caixão que foi a descolonização portuguesa. Morto desembarcou em Lisboa, e por cá andou anos e anos, até que resolveu optar pela nitidez de se suicidar.” (365) Mas, ao contrário do que possa sugerir o que está para trás, a visão de conjunto não é pessimista. Podemos até, mais uma vez, retomar as palavras com que Gabriel Magalhães definiu o seu livro de ensaios atrás citado: um “ponto de vista lúcido de um optimismo pessimista, que nos mostra como é que a nação vai caminhando onde coxeia.” (10) Para isso contribui certamente a maneira de estar no mundo do autor de Espelho meu[5], traduzida numa espécie de falta de pressa de quem parece desvalorizar (e descrer) eventuais impulsos justiceiros que visem corrigir a sociedade portuguesa. Sim, errámos e continuamos a errar; sim, os funcionários públicos são uma casta privilegiada, com “cromos” que se repetem de serviço para serviço (num romance anterior, dissera através de uma das personagens: “Sou funcionário público para isso mesmo – para que a minha vida seja compreensiva comigo. Enfim, para que as coisas parem um pouco quando eu preciso de parar.”[6]); sim, os nossos crimes são quase todos inocentes (incluindo o que vitimou Salazar em 1968); sim, o nosso 26 de abril está por fazer. Mas, como diria Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde. Mais importante do que punir é saber, compreender e reparar o que for reparável. Importante é saber que Salazar não caiu da cadeira mas caiu no chão devido à deslocação intencional do lugar da cadeira em que costumava sentar-se; e que o facto constituiu uma atitude de protesto e de revolta de uma das meninas suas “protegidas”; e que houve (na verdade da ficção romanesca) uma história com essa cadeira, roubada e recuperada duas vezes, numa intriga que tem tanto de policial como de psicodrama. Mais importante do que prender Joaquim Malaquias – em cuja figura o leitor mais desatento não deixará de reconhecer outro(s) ator(es) da nossa triste realidade político-judicial – é compreender as razões que a permitem e de certo modo a justificam. Acabamos pois por perceber que as referências a Maigret et le clochard não são inocentes. Tanto nesse como no romance de Gabriel Magalhães as vítimas são duplamente vítimas, os culpados não o são verdadeiramente e os crimes não são verdadeiros crimes. Em Simenon, sobra a complexidade do ser humano; em Gabriel Magalhães, fica a doçura da compreensão, que o particularíssimo estilo do autor sublinha. Esse estilo, que pode chegar a parecer naïf, destaca-se sobretudo pelo inusitado, pela exatidão e por uma espécie de ternura que frequentemente o envolve. Veja-se a referência “[a]o rosado Palácio de Belém, como um bolo de noiva com vários andares” (11); ou a descrição do novo Museu dos Coches: “Tudo era demasiado amplo, demasiado claro: uma chapa cinzenta no chão e uma bofetada branca nas paredes.” (399); ou esta visão da capital: “Dir-se-ia que, em Lisboa, até o frio nos afaga.” (300); ou o modo como evita brilhantemente o lugar-comum: “Os taxistas de Lisboa por vezes são assim: gente irritada com a vida, filósofos maldispostos, Diógenes cujo tonel é o seu carro.” (284); ou ainda, para terminar, o modo como o autor capta uma sensação que qualquer um de nós já experimentou: “Quando chegou a casa, Vasco abraçou-a, enquanto ela descalçava os sapatos, como quem mergulha os pés na água fresca do soalho.” (223) Se queremos sobreviver a Portugal continuando a ser portugueses, Crimes inocentes é um excelente ponto de apoio, confirmando-nos um autor que se revela inteiro em cada uma das suas obras. [1] História crítica do género policial em Portugal (1870-1970): transfusões e transferências. Tese de doutoramento em Literatura Comparada. Porto: FLUP; 2007. [2] “Policial”. In BERNARDES, José Augusto Cardoso, dir. Biblos: enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Vol. 4. Lisboa / São Paulo: Verbo, 2001, col. 310. [3] Lisboa: Alêtheia. [4] Lisboa: Planeta. [5] Espelho meu: a leitura diária do Evangelho pode mudar a vida. Prefácio de J. Tolentino de Mendonça. Prior Velho: Paulinas, 2013. [6] Não tenhas meda do escuro. Lisboa: Difel, 2009, pp. 22-3.
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