1.
Então agora é que vens, identificar o corpo pelos dentes depois de queimado. Reclamar os anéis de latão, Que ficaram perdidos pelos dedos, à espera de serem oferecidos. Não foram suficientes para ti todas aquelas combustões que acordavam vizinhos a meio da noite. Ainda não perdeste o vício de brincar aos testamentos, às palavras entregues para sempre à luz da lei. Foste sempre adepta do fogo posto com extintor à mão e tinhas o dom de ler o passado nas cinzas que sopravas às escondidas, pelas redes sociais. Em busca de amantes com tiques nervosos no polegar direito e cangalheiros amadores. Acaso vos acabem os temas de conversa, e o silêncio se torne demasiado incómodo, não te esqueças de lhe contar como é que ganhaste esse cheiro a chocolate branco, derretido à luz das velas entre o teu corpo e o meu. * 2. Quero alugar-te como âncora, para que me ajudes sempre que eu comece a dar ares de balão de ar quente. Sabias que à conta da 1ª Lei da Termodinâmica ando aqui cheio de medo, que esta solidão partilhada que temos, se parta no chão? Mas também não estou disposto a ter o trabalho necessário para que isso não aconteça. Aplico técnicas budistas para evitar colocar o tu e o eu envolvidos em papel de celofane. Bem sabes que desde cedo me deito como um seminarista que partilha casa com demónios. Que a minha cruz são as palavras, a morte é a fuga e o paraíso é sempre onde eu não estou. Desde cedo que me sento à mesa com o Trump vestido de vermelho, servido por pornstars, que pensam mais em veneno do que em fazer amor. Olha no buraco da minha memória e vê, como ele condescende a deixar-me provar as entremeadas barradas de ambrósia. Oscilando entre gargalhadas infantis e as queixas de quem não aguenta mais, de quem está farto da existência e de quem faz parecer que a culpa é toda minha. Quero lá saber que tudo caia desde que eu não esteja vivo. Já não disfarço o egoísmo, nem estou sempre disponível e sim, tens razão, obrigado. Estava já a subir demasiado alto. * 3. São 10 horas na Malásia e eu continuo a falar com tigres que usam lenços na boca. Daqueles que assaltam bombas de gasolina com mercedes benzidos de poesia e se recusam a aceitar o fim do Velho Oeste. Que culpa tenho eu se um dia imaginei a minha voz, escrava de salas de call center, à mercê de uma chuva de chamadas, na partilha de um open space com lotação esgotada de sonhos adiados. É verdade que ainda procuro pétalas brancas num Mundo demasiado iluminado. E sim, é ridículo que eu ainda perca tempo a entregar bilhetes de namoro através de silêncios. Mas a espera aperta-me, a decisão mata-me e a visão nobre foi tão pouco celebrada nos tempos antigos, quando a cauda do meu piano era ainda um vestígio deste fóssil. Gosto de atrasos nos transportes e deito esmolas às almas do sossego. Conheci toda a gente que vi chorar por um acaso e não quero mais ninguém. * 4. Ousei viver o mito de uma vida livre, entre beijos, os momentos que agora me parecem apenas ilusões. Respirei a morte e vomitei-a por um triz. Segui os conselhos dos meus arquétipos e fui-me abstendo de tirar conclusões. Sobre as agulhas de madeira, que desenham tatuagens enquanto te leem a alma, acreditei sempre e forcei-me a abraçar preconceitos, para pode sair da minha caixa e finalmente ver que cor tinha, quantas arestas, quantas sombras. Só p’ra que o verde me infestasse do cheiro a maresia e de arquiteturas de latão e paredes furadas de tiros. De calibres os mais rápidos, os mais isolados do oceano pacífico, nos cus de judas da história do meu povo que chorou durante séculos na busca de um lugar novo e cantou a saudade, do nada, De ter e ainda me achar imortal mas as fendas tectónicas do meu corpo não me mentem. O próximo terramoto só voltará a agitar águas paradas numa próxima vida. Porque desta, eu já não me livro.
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Abril 2021
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