Desde pequeno que Rabi' Jaber queria escrever uma obra-prima. Escrever livros, como diz uma das suas personagens, "é como construir pirâmides". Nascido em Ba'aklin (uma pequena cidade do Chouf) no ano de 1972, Jaber estudou Física na Universidade Americana de Beirute. Escreveu o seu primeiro romance, "O Mestre da Obscuridade" (Sayyd-l-'atma, com apenas 20 anos, romance premiado pelos críticos da editora Ar-Rais. Em 1995, Jaber publicou a sua segunda obra, "Chá Preto" (Chai Assuad), que esboça linhas essenciais dos seus romances posteriores. Um ano mais tarde, publica, sob pseudónimo, um novo romance intitulado "Borboleta Azul" (Alfaracha al-zarqa'). No livro "Ralf Riz’allah ao espelho”, publicado em 1998, regressa à técnica dos seus primeiros trabalhos, utilizando histórias verídicas como base para uma elaboração imagética. É essa necessidade de narrar a verdade que leva Jaber a procurar inspiração em livros antigos ou projecções cinematográficas. Jaber considera que a Escrita é a sua única salvação e, como tal, decidiu retirar-se da vida pública para se dedicar a esta arte a tempo inteiro. Continuando a combinar a realidade histórica com a imaginação, Rabi' Jaber publicou inúmeros romances de inspiração histórica: "Eu fui um príncipe" (Kuntu Amiran) em 1997, "O último olhar para Kin Sai" (Nazra akhira 'alla Kin Sai) de 1998, "A viagem do granadino" (Rehlat al-Gharnati) de 2002 e "Beirute, cidade do mundo" (Beirut, madinat al’Alam) em 2003. Grande parte destes romances tem como pano de fundo a Guerra Civil de 1840-1861. Apesar do pessimismo ser uma constante nas suas obras, é possível entrever de vez em quando um sorriso na evocação da Infância. Em 2005, é publicado "Beritus, cidade subterrânea" cuja estória versa a existência de uma Beirute construída e habitada sob o solo como alternativa à Beirute da superfície, constantemente assolada pela Guerra. Ainda no mesmo ano, Jaber publicou "Relatório Mehlis", um livro que evoca uma vez mais a capital libanesa e o clima nela vivido antes e depois do assassinato do antigo primeiro-ministro Rafic Hariri. Mais uma vez, e acentuando a tendência dos seus livros anteriores, é a cidade de Beirute que se assume como a personagem principal dos romances desse escritor libanês (ainda) não traduzido para a nossa língua. Crónica publicada no jornal diário Al-Hayat no dia 31 de Janeiro de 2007 dedicada à cidade de Beirute.
Quinta-feira, 25 de Janeiro de 2007. Onze horas da noite. As ruas de Beirute estão vazias. Atravessa-se a rua sob as luzes eléctricas cor-de-laranja. Um posto de controlo do exército. Veículos militares. Esta noite, recolher obrigatório. O exército emitiu uma declaração. Os media transmitem a declaração oficial a cada quinze minutos. Sair no distrito de Beirute é proibido das 8.30 da noite até às seis da manhã. Caminha-se por ruas secundárias. Ninguém na rua. O vento assobia na rua Abdel Wahab al-Inglisi. Alguns cães ladram num descampado atrás de um prédio. Não soam como raposas. Isto não é numa floresta. Os prédios não são árvores emaranhadas. As esquinas das ruas, tu conhece-las. Esta ruela não é uma brenha. Serpentes não te vão atacar vindas das lojas. O passeio está húmido. A água brota por debaixo dele. O pavimento da rua inchou. Tu conheces estes caminhos. Há anos que atravessas estes mesmo caminhos. Tu conheces as montras das lojas. Tu contas as árvores. As laranjeiras de Monot. Os ciprestes de Bliss. A quina na Sioufi. Quem rega estas árvores? As nuvens regam árvores. Esta noite não chove. Ninguém nas ruas da cidade. As pessoas refugiaram-se nas suas casas. O dia foi longo. Terça-feira, fogos disseminam-se pelas ruas da cidade. Na quarta-feira, uma manta negra cobriu varandas, carros e escritórios. O papel branco da secretária está coberto de negro. Isto não é chuva. O nível de poluição subiu. Bebam leite. O leite faz bem. Previne a asma. O fumo paira sobre o cruzamento Monot-Rue de Damas. O fumo paira sobre a manhã de quarta e os trabalhadores da construção civil limpam o caminho com mangueiras. Depois, o sol põe-se. Começa quinta. Lutam. Queres saber, ó leitor sentado para além do mar, a razão? Lutam. Ponto-final. À noite, o recolher obrigatório. Passa da meia-noite. Da janela vê-se a cidade adormecida. O silêncio é incrível. Não há carros a cruzar as ruas. Não há televisões ruidosas. Não há festas. Não há manifestações. Não há casamentos. Não há música. Não há barulho. O silêncio é incrível. Apesar de se estar na cidade. Isto não é uma floresta. Supostamente, Beirute é uma cidade à beira-mar, sobre-povoada. Onde estão as pessoas? Sair é proibido. As pessoas permanecem em casa. Silêncio perfeito. Fechai as portas fechai as janelas. O expectante usa a oportunidade e dorme esta noite. A cidade dorme e ninguém esmurra ninguém. A cidade está dividida. Onde está a terceira metade? A terceira metade existe. Aqueles que calam não são importantes. Talvez não sejam importantes. Talvez sejam a coluna secreta. Quem impede os fósforos e os fogos de atingirem as casas? "Cinquenta justos (Gen. 18:28)". Dormirão esta noite? O teu amigo disse esta manhã: "A origem da maldição é a geografia.". Ele disse isso? É difícil nascer neste país e ter uma vida tranquila. O problema não reside nas pessoas, o problema está na localização. Estará certo? Ibn Khaldun² não distinguiria uma da outra. Pois não? Ibn Khaldun não está aqui. Teve sorte. Não, não teve sorte. Ibn Khaldun sofreu. Viveu uma vida difícil. Esta noite, ao contemplar a cidade adormecida, é possível ver Ibn Khaldun sentado à beira-mar. Ninguém o vê. O mar é de um negro quase verde. As pessoas permanecem em casa. Os soldados vestem os sobretudos. O vento da noite é frio. Apesar de nesta noite o vento ser suportável. Há pouco, havia uma brisa quente. O tempo de Beirute é imprevisível. A cidade assenta numa cabeça cravada no mar. Suspensa entre dois mundos. Se tocada pelo vento marítimo, belisca-a o frio norte. O reumático sofre. O reumatismo é terrível. A gota também. E a gota? É melhor não comer pássaros no churrasco. A gordura não faz bem. E o reumatismo? Precisa de lã. A lã é uma protecção. Mas, se a lã provoca alergia é um problema. A doença cerca-nos. Não há necessidade de doenças agora. A cidade está adormecida. Não vamos ficar doentes enquanto dormimos. A cidade delira quando dorme. O que vê, pousada como um leão marinho à beira-mar? Vê um pesadelo. Vê o passado o presente o futuro? Ibn Khaldun senta-se na praia de Bourj Hammoud perto da montanha coberta de verde. Em que pensa? As emoções da cidade estão divididas. As pessoas estão distribuídas por duas trincheiras, três trincheiras, um número indefinido de trincheiras. É importante estar numa trincheira. Os sacos de areia servem. Os carros queimados servem. As pontes servem. Os vivos servem. Os prédios altos servem. Servem quem? Servem porquê? Não é claro. A opacidade envolve o país. Os olhos de Bourj el-Murr olham, enegrecidos cegos à cidade. Para onde ir? Mobilização, mobilização. Todos contra todos. As pessoas entrincheiradas. As trevas estarão de volta? Amanhã de manhã, a cidade estará em pedaços. Traçamos linhas verdes uma vez mais. Habitamos as ruínas do Holiday Inn? Esperamos mais dois dias? Esperamos mais uma semana? Mas porquê? A espera tortura. Tensão. Espera. O estômago está ferido de ânsia. Rebentam-te úlceras. Úlceras são um problema. Deve evitar-se comida ácida. Foul. Babba Ghanoush. Tabbouleh. Tomate. Hummos com Tahine. Fatteh com grão-de-bico e iogurte. Isto é um problema. Porque fechou Baladour as suas portas? Ibn Khaldun nunca comeu Foul em Beirute. Viveu há séculos atrás e adorava comida magrebina. Qual seria o seu prato favorito? Gostaria de ovos fritos? Gostaria de Siadhie e Samkeh Harra?
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