O que vale um poema
O que vale um poema menos que uma greve menos que o operário menos do que um grito menos do que a fala menos do que um braço menos que um poema vale um poema bem menos mais vale um cão vivo e (quem sabe?) uma república. *** O nulo poeta/ema quando hutus exterminaram tutsis quando hutus exterminaram tutsis quando hutus exterminaram tutsis quando tutsis exterminaram tutsis . e quando o poeta escreve [quando tutsis exterminaram tutsis pecado pecado pelo pecado pelo pec- ado peca/do pecado de não saber o que são tutsis tutsis o que são o que são tutsis quem são hutus o que exterminaram tutsis e procura onde fica Ruanda Ruanda¿ e chora de não saber onde fica onde fica exterminaram tutsis Ruanda – a maioria a golpes de facão. *** O último poema ou Rio Lete Para a amiga Juliana Pasquarelli Perez “Um dia em que se possa não saber.” (de Sophia de Mello Breyner Andresen, “Intervalo II”, 1950) A cabeça no limbo do tempo. Descansar já sem rosto e sem nome e, deitado no córrego insone, esquecer-se do bicho, do homem e, com o tempo, esquecer-se do tempo. *** Tenso sobre as patas aguardo aguardo sobre as patas tenso e escuto quase nos testículos a maquinação de sonho, carne e zênites. *** Oleaje muro branco onde os adeuses do mar se recolhem junto à sombra, salgados e frescos. *** Equações matemáticas 1) na curva, na nuance encontrei Deus no limpo da linha reta o perdi 2) quando se escuta o marulho da noite e as coisas ganham contorno insuspeito a geometria do silêncio aflora e a vida vale 3) o silêncio anterior ao construto da fala no lábio 4) não diz se sabe que o dito não condiz com o que se queria dito e, dito, é outro dito no ouvido que o apascenta. *** Manhã a – Notícias da manhã informam que o tempo, de fato, passou, e que a noite foi só uma de fato. b – O dorso arrebentado do sol, surge o dia. c – A manhã ruge nos dentes das árvores. *** arder a vida em palavras medidas sombra por sombra duma mão noutra arder a vida na geografia incerta da boca que arde um instante e desce à terra. arder a vida nos ecos e nos corpos ora nacarados ora suados do discurso que o lábio promete nem sempre cumpre e quando cumpre é sempre quase. equidistante do fim e do início arder a vida enquanto o corpo se desfaz devagar com carinho quase mas resoluto. arder do verbo absoluto à procura o verbo na sarça que se queima magnífico e não existe. arder a vida pruma bosta qualquer que mal nasce já não existe :: – arder a vida à procura dum sol pousado na mesa dum dia de justiça entre irmãos e descer à terra ciente – mas contente, resoluto – de nada ter nas mãos. *** Os poemas “O nulo poeta/ema”, “O último poema ou Rio Lete”, “Equações matemáticas” e “Manhã” fazem parte do livro A máquina de carregar nadas; “Oleaje” faz parte de Poemas em torno do chão & Primeiros poemas; “[arder a vida em palavras]” integra livro a ser lançado no primeiro semestre de 2020; e “O que vale um poema” e “[Tenso sobre as patas]” ainda não têm previsão de lançamento.
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Janeiro 2021
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