Pai, mãe, filho, filha, tio, sobrinho, afilhado, a matilha de testemunhas de Jeová agremiada, uniformemente vestida, sorria em direção aos estores levantados por incauta mão de escritor, de pseudónimo Borges, em homenagem ao autor argentino que, depois de cego, passou a ditar os seus livros. Também este Borges lisboeta ditava os livros, ainda que lhe faltasse alguém disponível para executar as funções de redactor. Com um rol de soluções ao seu dispor para afugentar os predadores — voltar a baixar os estores, acenar adeus, perseguir os tipos à vassourada, disparar um tiro de espingarda para o ar, numa de assustar — , Borges, dado a dramas, optou por aquela que mais talento e sacrifício lhe exigia: tombou no chão como se tivesse morrido. Sustendo a respiração sem conter as subidas e descidas de independentizada pança, lambido repetidas vezes na face pelo caniche que a sogra, amante e valioso pilar financeiro, adquirira fazia seis tenebrosos anos, observado pelas testemunhas de Jeová como se de pintura de Picasso em exposição no museu se tratasse, Borges foi assaltado por um raio de inspiração ou urgência criadora, um turbilhão de líricas e perfeitas frases, de complexíssimas personagens. Um romance – obra-prima, combinação de Cervantes com Tólstoi – desembrulhava-se-lhe dentro do crânio. Mas não queria dar parte fraca. Não daria o gostinho àquela gente que todo o santo domingo lhe batia à porta. Não abriria os olhos. Tinha traumas com testemunhas de Jeová desde que Sandrina, grande amor liceal, terminara relação argumentando que a fé e a fidelidade à seita valiam mais que o amor carnal. Por respeito à defunta relação, Borges permaneceu estirado no chão frio, lambuzado de saliva canídea, enquanto o romance da sua vida se escrevia mentalmente. Inúteis foram os clamores da caneta. Não tomou nota de uma só sílaba que a imaginação lhe ditava. Despertou com um par de estalos da sogra, namorada, regressada da mercearia.
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Janeiro 2021
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