primeiro: o coração
primeiro: o coração. se calhar dois (um para quando se morre outro para a espera do milagre) e o teu sorriso icónico já perto de desaparecer: há coisas que só depois percebemos que devíamos ter roubado – e mais tarde o que me fica nas mãos, demasiado íntimo para carregar comigo enquanto faço as rotinas na loja do costume e perguntam como vai? e sei por dentro que o teu sexo me ficou no cheiro, por isso sorrio e genuinamente respondo que muito bem, cá se vai andando e sorrio de novo no meu corpo o teu rasto o arrepio de só há pouco teres saído: volta, estou tão perto (se todas as noites me visitasses seria tão fácil morrer) enquanto por dentro falo calada a dizer tanto e o corpo, o corpo e o sorriso que não voltei a ver, o sexo a namorada que guardas na gaveta lá de casa quando apareço: mas primeiro sorrio primeiro faço as compras da loja do costume sorrio de novo os morangos estão fora de época o teu sexo numa estufa as laranjas enormes, com uma cor de encher os olhos, mas primeiro, o coração. primeiro: o coração. * ao poeta que me envia árias avulsas andas muito lírico, amor. não compreendo a tua necessidade de ouvir ópera sem parar, isso não existe essa grandeza dos afectos essa adolescência momentânea os corpos rosáceos sob um tecto de estrelas isso não existe, meu amor. agarra-te ao trabalho no supermercado abraça a dormência da rotina esquece os romances deixa de escrever e sobretudo não ouças mais ópera que isso não existe, amor, e se existir não é perto de nós. paga a renda, come chocolates, consolida, filho, consolida, que o inverno vai ser longo e esses cravos na parede e essa força e esse amor universal não existem nada disso existe por isso agarra bem os talões de desconto, serão a maior carta de amor no teu correio, ajuda as velhas a atravessar a rua bebe até cair mas só a partir das oito da noite que não te deixam sair antes do trabalho larga a literatura deixa os clássicos para reciclagem mas se for poesia queima-a: o verso livre é perigoso. larga os amores, as flores e os cravos agarra-te ao boletim de voto e às revisões constitucionais mas só se te deixarem sair do trabalho para as urnas. a última vez que fodeste a sério eras adolescente e já nem sabes se foi assim tão bom mas não te preocupes com mais, o prozac não esquece a alegria, acaba o cigarro, abotoa o colarinho toma a certeza de que só essa cadeira é o teu lugar no mundo: volta para dentro sorriso amarelo ombros encolhidos cabeça baixa, barba feita que não deixam que cresça porque fica mal, fica-te tão mal esse pensar divergente mas sobretudo larga a ópera, que andas muito lírico.
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Abril 2021
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