Fetos
Esta mulher que aleija plantas com agulhas de bordar que as espeta em sangue rijo sob as pálpebras dos mortos Esta mulher que presidiu ao nascimento do pânico com alguma solenidade nos dedos e um intocado calafrio de vergônteas na barriga Esta mulher que despejou ontem nos rios uma enxurrada de esqueletos anónimos como quem puxa a corda fria do autoclismo como quem mija e cospe línguas sobre a noite mais escura Esta mulher estranguladora de cisnes que circula como um lírio pelas cidades bulímicas com uma criança ulterior no pensamento Esta mulher pedra de muro de holocausto onde botas pisariam crânios lívidos de gatos por nascer e que adentrou a superfície de uma treva com um zigoto a pendurar-se às omoplatas Mulher que inclinaria os seus cabelos transgressores sobre a lombada dos berços se toda a luz não se esquivasse do lugar * Ornitologia Acorda cega, a grande flor ossificada sobre a língua Ouve o canto do pardal que atravessou o pesadelo e sente unhas de plumagem cor-de-rosa Envolta em luzes e fedores placentários, uma boca de defunto que procura a pulsação da magnólia Alguém diria que se despe como um lírico animal entre colunas de dossel um corpo nu, sacralizado de feridas Alguém diria que não consegue suportar a fluorescência dos espelhos a abatê-la frontalmente nos malares Que já não pode sustentar a letargia das manhãs a azular-se sobre as teias que lhe cercam o sopro O bisturi com que lhe abre o coração e desencrava os uterinos parasitas A sua força de queimar-lhe as ervas podres dos cabelos a sua força de acender-lhe a celestina labareda sobre o crânio É sobretudo uma mulher de iridescência maligna Talvez respire a lassidão a evolar-se dos lençóis como um perfume de jasmins aquela nuvem de jasmins gaseificados circulando nas narinas em estado absoluto de graça Talvez inverta sobre as tetas o leite roxo dos mortos e lhes assopre nas cabeças um enxame de varejas e lhes enfaixe os calcanhares e lhes extraia em movimentos e pancadas toda a flora em radiância dos rins Se acender, entre os seus dedos, um cigarro pensará pausadamente sobre a larva secretíssima nos dentes dos amantes pensará nas asas fétidas dos pombos pensará sobre carniças baptizadas sobre as mesas Os domingos em que os porcos brilhavam Pensará na claridade dos bules na porcelana em estilhaços estalando vocalizes A dolorosa cicatriz que a entenebrece por dentro E aos poucos lembrará da virulência de embriões do nevoeiro em que sangraram os seus ovos suspendidos nas cordas do seu poder fantasmagórico, excrescente do seu hálito de lua a ministrar-lhe a genitália Alguém diria que ainda ouve o crescimento dos espinhos que furaram a carnação das autópsias Que estremece como um pássaro de pó – entre abóbadas e trevas Que levita, semelhante a um esqueleto numa bolha de raízes Que desata o linho fúnebre dos dedos e o eleva como um véu a apodrecer-se de palavras É sobretudo uma mulher nupcial
1 Comentário
Maria Jorgete Teixeira
26/12/2020 14:18:37
Muito bom!
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Janeiro 2021
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