D’OURO
Nas lascas das pedras do Porto eu leio João Cabral e me educo no verso severo, na ordem exata daquilo que parece bruto mas tem por essência fina esta cidade beirando o mar fluido. Com a água desses dias lavo meu rosto meus versos trefeitos ainda antes de serem escritos. É que não te posso fazer sentir entender como é a vida para quem tem discernimento. A água escorre em dias e a cada gota passam juntas duas raízes, elas crescem, dão frutos... vão parindo uns filhos de longos nomes: o sofrimento agudo do sucesso, o sofrimento agudo do amor, o sofrimento agudo das impressões mentais, da ansiedade, da harmonia, da paixão, da confusão, da escuridão, da destruição, do caos. A escravidão do hábito é a semente da dor, A escravidão da mudança é a semente da outra dor. Perturbações da mente. E eu aprendo nas pedras duras do Porto o ascetismo do verso. – tão bonito, tão difícil. porque na cidade desfazem-se os dias e os anos, sobrescrevem-se histórias, entrecantam-se fados. E eu entendo a liberdade ritualística do verso Mas o conhecimento disso não é obtido com o suporte da imagem mental, pelo que não é objeto do mais puro aprofundamento. “Pensar é estar doente”, disse o morto de Lisboa. o leite coalha a flor murcha a ferrugem come o ferro. E eu compreendo na rocha a simplicidade acústica do verso branco antes de ser manchado inflexível antes de o cinzel tocá-lo robusto antes da flecha virar ferida Meu verso é ausência, antes de tudo ausência, sincero em seu estado mudo vivo quando cala – nas ruas antigas da cidade do Porto... o som do meu verso é surdo. * A Matéria dos Dias Perto da beira, na orla da praia o corpo espreguiça, estica e atrapalha a calmaria das ondas, o queixume das vagas. A boca sorri, mostra os dentes que tem vai mordendo o silêncio, mastigando o sopro do vento. As pernas correm em quente contraste. Entre o cinza das pedras canelas procuram lugares para que mãos em muitos dedos semicerrados estendam vermelhos panos chacoalhando com a areia a solidão das marés. Ondula, estica, encolhe e arrasta, desenha curvas, arabescos dedinhos salpicam letras miúdas nos pedaços de ontens que beiram o mar. os pezinhos calcam os búzios e machucam as valvas deixando sua marcas na meditação da poeira. mas é forte o vento, resiliente as ondas, incansável a cheia. No ritmo da lua a água cresce, avança, engole, se estica - espalha expulsa rastros deixando os restos. Panos vermelhos molhados... passado o assombro, já na calma da baixa maré, olhos infantis procuram o arabesco antes escrito: foi embora a nado... As mãos adultas percebem nos dedos enrugados por tanta água a borracha do tempo, o rapto do fato. Os dias passam.
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Histórico
Janeiro 2021
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