COR CORDIUM I will take the dark part Of your heart into my heart. Perfume Genius Foi quando estávamos em Bournemouth, encostadas ao túmulo da Mary Shelley, que percebi que um dia também morreríamos, talvez sem nunca trazer à luz os grandes monstros que nos habitam. Enquanto tiravas fotografias às campas anónimas, eu recitava baixinho um verso de um poema sobre carregar um coração dentro de outro coração, como um mantra protetor. * Os homens da tua família têm corações fracos. Assustada que tenhas herdado uma bomba relógio, passas a fumar às escondidas. Ou só em dias de festa. * Quando Percy Shelley se afogou levando consigo o romantismo, fizeram do corpo morto um fogo que iluminasse aquela praia italiana e a noite triste. Das cinzas restou um músculo em forma de punho: para efeito poético, digo que era o seu coração. Em prol do rigor histórico, muitos escreveram que era o fígado, conservado pelo sal do mar. O coração foi depois enterrado com Mary, dando corpo à metáfora da entrega absoluta. Para efeito poético, imagino que ela está aqui, diante de nós, com o coração [ou o fígado] dele sobre a gaiola das costelas. * Contigo todos os dias são de festa, apesar de nos vestirmos sempre de preto, como se um funeral estivesse sempre à espera. * O céu cinzento, o mar cinzento e as fotografias também cinzentas, em vários tons de metal. Tu no pontão. Tu no hotel. Tu na praia. Tu no concerto. Tu no cemitério, só de passagem. * i carry your heart with me (i carry it in my heart) * Este é um poema-monstro, galvanizado pela tempestade elétrica que vimos cair sobre o mar de mercúrio. Carrego a areia que dorme nos teus sapatos ao peito, como lastro para evitar afogamentos. Carrego as partes sombrias do teu coração no meu, assim como as mais luminosas. Carrego ainda o cabelo que cortaste, ausente das fotografias onde já és outra. Colecciono estas relíquias para que um dia, se revelares que o teu corpo é afinal mortal as alinhe numa mesa de cirurgia para te trazer de novo à vida, através da lembrança e antes da pesagem final, quando fores uma pedra e peso sobre o meu peito e depois, uma pena na balança. PINTURA HABITADA Viver sozinha é ouvir pela primeira vez o ranger da madeira e pensar que alguém entrou em casa, convidado ou intruso, para uma visita. Agora percebo que os objetos emitem zumbidos próprios, radares sonoros domésticos que afastam a solidão como uma máquina de sons que me conduz ao sono. Sem mais ninguém para entreter, disponho a mobília emprestada, alinho os meus livros seguindo o rigor dos meus dentes tortos, depois rego as plantas de plástico negligenciadas pelo inquilino anterior com o suor das mãos dos meus amigos. Se o gangsta rap do vizinho é o meu novo despertador, os miúdos que choram no apartamento ao lado lembram que uma casa com crianças não conhece o silêncio; revejo a minha decisão de nunca querer ocupar o quarto dos arrumos com berços, ansiedade e brinquedos. Adoto estes espectros que atravessam as paredes em forma de gritos como se fossem meus, sirvo-lhes refeições como uma mãe exemplar com os restos aquecidos das vidas de outros. Viver sozinha é ainda assinar o nome num contrato, assumir as contas e os estragos. Quando uma porta bate ao longe, rodo a cabeça com a velocidade de um cão abandonado ouvindo o mais delicado chamamento. E quando celebram o aniversário de um desconhecido que vive sobre o meu quarto, a música desafinada desce desde os céus até mim e sopro uma chama invisível pedindo desejos atrás de desejos com a fé cega de quem ainda conta aniversários. A ilustração de Mafalda Salgueiro foi concebida a partir do poema "Pintura Habitada" para A Bacana.
O mesmo poema foi originalmente publicado na revista Tutano, número zero, editada pela Poetria.
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Abril 2021
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