inalo cada uma das raparigas
que segue à minha frente em fila indiana, raparigas que se maquilham no comboio, a mão firme desenhando as linhas de ferro sobre os olhos, duas estações antes da chegada ao destino. raparigas que leram um qualquer código feminino de regras sobre pintar perfumar mascarar, raparigas que conhecem os truques de tirar pêlos e dúvidas sem dor, raparigas que abanam as ancas ao ritmo dos estalidos de saltos agulha em passeios de pedra polida com a elegância de garças. ah, raparigas que vivem na possibilidade do meu espelho, sobre as quais se escrevem músicas e poemas, que nunca se constipavam quando posavam nuas no atelier de artistas e que podiam ser duplas imagens minhas fosse eu uma dessas raparigas que dançava coreografias nos intervalos da escola. mas sempre preferi o couro da bola e a companhia dos rapazes que cheiram a coletes de ginástica usados. * Quando o meu corpo intocado atrasa o sangue, nasce em mim o medo de ser a escolhida para carregar um novo messias; enquanto sinto o peso de uma laranja na mercearia, imagino Maria, a mão sobre a barriga desenhando a curvatura do mundo. Entrego as moedas e recebo o vinho debaixo das luzes esquizofrénicas natalícias e discuto a existência de deus com o vendedor. Não acredito em partos virgens ou estrelas guias, arbustos em fogo nem em deus elétricos com castigos em forma de relâmpago. Mas acredito em barricar o coração a estranhos, em deixar o amor em espera, com música de elevador ao fundo. Acredito ainda em anjos que poisam no teu parapeito entre voos para te espiar e na transformação do vinho em sangue. Acreditei ainda na redenção quando seguraste a minha mão numa fila de supermercado e na ubiquidade quando te sabia longe ao mesmo tempo que te carregava no coração e no bolso. Coleciono estas relíquias na catedral que te ergui; os teus cabelos brancos, uma garrafa de lágrimas, o osso que partiste na quarta classe, a corrente com que te prendi às minhas chagas. Há ainda a almofada e os lençóis que partilhamos na noite em que dançamos com o santo Bowie; agora há uma fila de peregrinos para ver o nosso santo sudário.
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