VESTAIS
Os romanos sabiam-no: é preciso encantar o fogo para que arda eternamente. Por isso escolhiam as virgens mais bonitas para vigiarem o fogo sagrado: vigiando as fiéis devoções dos homens, ardiam sublimes em lume brando. * PSEUDO-ODISSEIA Assim eles acabavam as casas: incendiavam os telhados de colmo. Daniel Faria Esta é a casa que pudeste escolher, hipotecada sobre a tua própria felicidade. Sem dinheiro para construíres uma só tua, compraste esta pré-fabricada e rezaste no oráculo do balcão de atendimento bancário para que os juros não crescessem ao ponto de não caberem ambos nela, o mesmo banco onde já tinhas feito o empréstimo do carro e que te tem espremido como por entre Cila e Caríbdis. Este apartamento é a tua Ítaca, a tua ilha emparedada e junta a tantas outras, iguais ainda que diferentes, todas flutuando e aglomerando-se à tona como sargaço de betão, tijolos e vasos sanitários, empurradas por uma corrente fria que ninguém pode prever ou controlar e que nos leva, dia após dia, ano após ano, por esse mar de desventuras que é a vida quotidiana e tributada. Estas são as contas mensais enviadas pelo Estado, pastor míope que sabe o teu nome, morada, NIF e declaração de rendimentos, e a quem não importa que sejas um Zé-Ninguém tentando garantir a independência precária do teu reino de nem cem metros quadrados, cuja coroa é a sala mobilada com móveis de madeiras exóticas e chaise longue, vasos de plantas a que desconheces os nomes e quadros pop-art de tão mau bom gosto, um sistema dolbysurround e a gigantesca TV HD onde vês o noticiário do pequeno quotidiano, mais o minibar de que te recordas quando alguns amigos te visitam e onde guardas dentro de garrafas de uísque o melhor líquido amarelo do rio Letes. (Mas… que amigos? Os únicos são um gato velho e doente a quem o veterinário já vaticinou uma morte breve e o dono da tasca em frente, ilustre anónimo que ouvirá as tuas queixas e impropérios enquanto regularmente renovares o teu voto de cão fiel.) Todas as madrugadas as estradas entopem com o tráfego contínuo para o emprego, versão contemporânea da guerra de Tróia, onde passas dez horas por dia fechado num sorriso de fachada, trapaceando gregos e troianos sem agradar nenhuns. A rainha Penélope todos (?) os dias te espera, desfazendo e refazendo a dobra dos lençóis, servindo-se do teu indolente cansaço para te desfiar o seu novelo de queixumes e dissabores , confabulando que ainda revalidarias a antiga luta contra os seus pretendentes – e mais nada tens a acrescentar sobre ela. Circe manda-te SMS’s para o telemóvel, põe-te likes no Facebook e identifica-te em fotos inocentes de que a tua mulher já suspeita porque tu, feito parvo, decidiste passar a segui-la no Instagram. Os teus conselheiros, convertidos em porcos, incentivam-te à poligamia, mas mesmo que dormisses com ela, de manhã seria mais uma das sereias destes tempos: mulheres siliconadas da cintura para cima e leggins push-up dos quadris para baixo, com maquilhagens tão garridas que é impossível distinguir entre princesas e amazonas. (Μαλάκας*! Estás velho e ainda sonhas com Nausícaa, reencarnada na estagiária que trabalha duas secretárias à tua frente, vestindo top e um par de blue jeans que ainda antes de nascido o Telémaco nunca assentariam nas ancas de Penélope.) Ninguém sobrará que venha, sangrando, lembrar-te pelo caminho dos asfódelos. Nem mesmo o teu único filho, peixinho de água doce, que crias para afogar-se num mar cada vez mais salgado, sem te sobrar tempo para o ensinares a conduzir o arado, a disparar o arco… Mas para quê a casa, quer dizer, a vida? Para outra encarnação, pseudo-Odisseu, deseja antes não voltares a nascer: ninguém está interessado em ouvir esta história, ou qualquer outra que venhas a contar. Μαλάκας [Má.lá.cas]: Caralho. Grego Moderno. * SÓCRATES EXPLICA(N)DO ÀS CRIANÇAS O peixe voa, ainda que não na exata medida de um pássaro: porque o peixe não tem asas. Mas o pássaro nada, ainda que não na exata medida de um peixe, porque não tem barbatanas. Pode dizer-se que certos peixes pairam e que certos pássaros mergulham: que certos peixes elevam o limiar em que nadam, que certos pássaros submergem o espaço em que voam. Mas não podemos dizer que o peixe é um pássaro, nem que um pássaro é um peixe, pelo que concebemos que o peixe é-o não sendo pássaro, e que o pássaro é-o não sendo peixe, e que no limite em que se cruzam, quase que um peixe se assemelha a um pássaro, quase que um pássaro se assemelha a um peixe. Como poderia portanto o peixe voar e o pássaro nadar, se o peixe não é pássaro nem o pássaro peixe, e se é o peixe quem nada e o pássaro quem voa? Voando o peixe de forma distinta da do pássaro, e nadando o pássaro de forma distinta da do peixe: não se permutam os sujeitos, alteram-se os verbos que os animam. Não que isto tenha consequências de qualquer espécie na realidade, mas conjugando o sujeito com o verbo avulso conseguimos imaginar a ação pretendida, ainda que o peixe seja um peixe e um pássaro seja um pássaro. Resumindo, o peixe pode voar e o pássaro nadar, se for na tua cabeça o espaço onde eles se locomovam: mas ter a cabeça cheia quer de água quer de ar não é bom sinal, nem abona a favor da tua inteligência, ou do teu discurso, dado que a imaginação é para crianças, meu jovem e encantadoramente inexperiente pupilo.
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