Leio um verso de Sérgio Nazar David, como que chave final do seu poema sobre um quadro de Paula Rego, um verso que insiste em ficar comigo:
"eu - engulo a rosa do destino". São muitas e variadas, as rosas do destino. As rosas do O Burro de Apuleio, com a devoção a Isis, Grande-Mãe, as rosas dos jardins dos alquimistas (dat rosa mel apibus) as rosas de Dante, as de Rilke e as tão dolorosas de Celan. Rosas como rosários. Perfeição, ou negação. Fernando Pessoa /Ricardo Reis não desconhece o peso destas rosas: Coroai-me de rosas, Coroai-me em verdade De rosas - Rosas que se apagam Em fronte a apagar-se Tão cedo! Coroai-me de rosas E de folhas breves. E basta. Ou, noutro dos hinos: Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada. Ou ainda: As rosas amo dos jardins de Adónis, Essas volucres amo, Lídia, rosas, Que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem. A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido já o sol, e acabam Antes que Apolo deixe O seu curso visível. Assim façamos nossa vida um dia, Inscientes, Lídia, voluntàriamente, Que há noite antes e após O pouco que duramos. Efémera é a vida e tudo o que os deuses aparentam oferecer. Nada é real, tudo é imaginação imaginada. Face a tanto desconhecimento, e tanta sombra, o caminho deve ser de retiro e de silêncio. Anunciando já poemas como o de Christian Rosenkreutz, "o que conhece e cala". E tem as rosas, a coroa de rosas sobre a cruz. Sendo a cruz o destino, que se engole... Há rosas, espirituais, angélicas, no Fausto de Goethe, e é o seu perfume, inebriante, que distrai os diabos que, obedecendo a Mefisto, deveriam transportar a alma do herói para os infernos. Mas seduzidos pelo poder do amor que a rosa traz consigo, distraem-se e Fausto é salvo, neste drama, ao contrário dos anteriores em que a punição lhe estava garantida (no de Marlowe, por exemplo). Falei dos Rosacruz e da sua doutrina, que Goethe conheceu bem e cito, a propósito, o poema-canção que tudo remete para o amor universal que atravessa mundo e homem (assim perceberemos que se no destino há dôr, há também redenção). Estamos no Quinto dia da aventura de Christian Rosencreuz: I Nada nesta terra é preferível Ao belo e nobre amor, Que nos torna semelhantes a Deus, E que tudo esclarece. Dirijamos ao rei este canto, Que por todo o mar ele ressoe, Nós perguntamos e vós respondereis. II Quem nos deu a vida? O amor. Quem nos devolveu a graça? O amor. Qual é a nossa origem? O amor. Como podemos perder-nos? Sem amor. III Quem nos gerou? O amor. Por que nos alimentaram? Por amor. O que devemos aos nossos pais? O amor. Como explicar a sua paciência? Por amor. IV Quem permite que nos dominemos? O amor. Podemos também encontrar o amor? Pelo amor. Onde se revelam as suas boas obras? No amor. Quem pode ainda unir dois espíritos? O amor. V Cantemos então todos juntos e bem alto em homenagem ao amor, Que ele cresça nas nossas Altezas reais, o seu corpo está longe, a sua alma longe está. VI Se ainda vivermos, Deus fará, pela sua graça, Com que pelo seu amor e grande generosidade que os separou brutalmente, Nós tenhamos a felicidade de os reunir Pelas chamas do amor. VII Esta dôr em alegria profunda mesmo que tenham de passar milhares de gerações, Se transformará eternamente. As estrofes de I-IV concentram-se exclusivamente na força do amor primitivo e criador. São para nós as mais interessantes, neste contexto. As seguintes já se prendem com a narrativa das Bodas, em que primeiro o corpo e espírito dos reis estão separados, e a seguir, pelas chamas do amor, se reúnem de novo, formando o andrógino alquímico, transformando o sofrimento em alegria perfeita. Goethe copia estas estrofes numa carta a Madame de Stein, (Briefe der Jahre 1764-1786, ed. 1965, p.933) mas sobretudo este conhecimento, que o inspira, é importante para o seu Fausto, e como sublinha K.Kérényi (Das Agaeische Fest, 1949) para a segunda parte da tragédia, a grande festa no Egeu, que recupera a festa marítima das Bodas. Se aqui predomina o elemento Água, noutro episódio serão as chamas do fogo em que o Homunculus, de puro amor se consome. Camões? : amor é fogo que arde sem se ver... Mas se nas Bodas Químicas dos Rosacruz, ou em Goethe, toda a transformação sonhada, desejada, conduz a metamorfoses felizes, de redenção verdadeira, outras há que são a negação sofrida de um tal sonho, de uma tal esperança, eternamente negada. E voltamos ao destino difícil de uma rosa que se engole, como quem engole a maçã envenenada de uma qualquer Branca de Neve. Brancura violentada, como no quadro de Paula Rego: tudo nesta pintora é dôr e violência, mais ou menos disfarçada. De Goethe, poeta do amor, ao Pessoa, da distância cautelosa, teremos de passar a um Celan que só aparentemente resistiu à treva do silêncio de Deus. SILÊNCIO Silêncio! Enterro o espinho no teu coração, porque a rosa, a rosa está com as sombras no espelho e sangra! Já sangrava, quando nós misturámos o Sim e o Não, quando os bebemos, porque um copo, que caiu da mesa, tilintou: soou numa noite que escureceu durante mais tempo do que nós. .... Silêncio! O espinho penetra-te mais fundo no coração: está unido com a rosa. União aqui de morte, não de vida. A vida tinha perdido o sentido. Num longo poema de Goethe, menos conhecido e menos trabalhado, por ser talvez tão hermético, Die Geheimnisse, Os Segredos (de que existe uma bela tradução francesa de Roger Ayrault) podemos ler esta interrogação: Está a Cruz densamente rodeada de Rosas. Quem envolveu de Rosas esta Cruz? Quer se aceite ou não a ideia de que Johann Valentin Andreae foi um cultor e não um crítico das sociedades secretas do seu tempo, o certo é que esta imagem forte permitiu alimentar o imaginário europeu, e os núcleos vários de meditação, a que a obra de Jacob Boehme deu também grande impulso nos século XVII e XVIII , na Alemanha como em Inglaterra, onde uma verdadeira escola boehmiana se desenvolveu. Sem tentar aqui dar resposta improvável, sugiro no entanto que pela via da Rosa se chegue, ou tente chegar, ao que foi na Idade Média o culto Mariano, o simbolismo do Rosário que o acompanha, e a ideia, que a Fé promove, de que para todo o sofrimento ( a Cruz) haverá redenção.
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