Esta coluna pretende estabelecer um diálogo entre a Poesia e as Artes Visuais, recorrendo a técnicas de colagem para a interpretação visual de poemas (ou excertos de poemas) de autores lusófonos. Colagem 1:
Amaral, Fernando Pinto do; Poemas Escolhidos (1990-2007), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, pp.29-30. Colagem 2: Andresen; Sophia de Mello Breyner; Cem Poemas de Sophia, Paço de Arcos, Visão - JL, 2004, p. 102. Colagem 3: Amaral, Ana Luísa; Às Vezes o Paraíso, Lisboa, Quetzal Editores, 1998, pp. 35-36.
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Lógica do baldio toda rua se planta com o pé que a pisa e tem quem cuide da cidade só com a sola dos pés lembro do cuidado do Meleca ao passar a caneta no Bira, o balão no Zeca, semeando o asfalto lá em Senador Camará que hoje cresce como erva daninha em meu coração também eu plantei as pernas numa rua de Camará, olhando a Vanessinha, eu tinha 6 anos e nenhuma escolha e Vanessinha cheia de sorvete de manga na manga da camisa outro dia soube que o Meleca morreu furado com faca na Água Santa meu coração virou a sua casa pudera eu quando morresse crescer também erva daninha no coração da Vanessinha é que a Vanessinha foi a primeira das namoradas que eu não tive. * Criança que come e assiste o pai chorar após um telefonema Até que o açúcar conquistasse a garganta, como um general vence antes o pescoço que a planície, até que o indicador e o dedo médio mergulhassem no leite, com a calma dos cães antitanques, e fossem à boca, porque mais condensada é a fome de açúcar que os filhos bastardos e líquidos da mama e da cana quando vão a fogo baixo (pois a fome se condensa em fogo alto no calor das redações que justificam as guerras), e até que os cristais se instalassem às portas do esôfago, como pequenas minas esperam pelos pés de meninos como o açúcar os espera e os tem mal pagos para que cortem cana e para que a cana magoada deixe pequenos mapas rasgadinhos em suas peles, até aí não sentira ainda a carne sem fibras de fevereiro, que agora escorria pela garganta, à maneira dos desertores, e era o ano que assim desertava pela primeira vez secando a faringe, e as águas daquela pequena geografia, menino de década incompleta, mais novo e menor que a guerra dos sete anos, desertando, mas agora o pai, que não tinha a voz que dissesse “meu amigo morreu”, (vai chorar, não quer chorar) dizia, como quem segura uma granada sem pino, não quer atirar contra iguais (vai matar, não quer matar), “meu amigo morreu” agora o menino, contra a natureza de homem, deita, e espera a noite, o pescoço ardendo, (não sabe ainda que a memória arma uma bomba-relógio com fios delicados de desejo e sacarose) e como tudo o mais não desiste, mas fevereiro desce pela garganta feito um pai sem fibras, sem água, sem choro, sem granada, desertando, vai morrer, não quer morrer. * Depois que nos mudamos você disse os supermercados eriçam a época como um código de barras eriça a moleza da carne distribuída nos enlatados eu disse são tão eufóricos esses amarelos na ferrugem das latinhas eu sou azul e sem coragem você é uma gema de alumínio rejuvenescendo o pincel dos nossos músculos você disse posso correr com estas coisas nas mãos sem que apite o alarme e você correu, com um pedaço 2kg de acém nas mãos fosse um sputnik inaugurando um sonho amarelo convalescente a terra é amarela e sem delegacias você disse O primeiro poema é inédito. Os seguintes integram o livro A estreita artéria das coisas (Garupa Edições).
como ser minha terra
sobre minha terra: preciso Conselheiro acordar sua verde mão disentérica e generosa sobre os homens e ver elas dadas às mil falanges pretas e insurretas de Carlos Marighella. preciso não temer minha fé em sebastião, em tranca-rua e na reforma agrária. preciso despertar Darcy (ouvi-lo atento como um Zarvos) me deixar morrer índio e indigesto ao registro. (preciso testemunhar meu fogo perdido) e tirar o pó dos reis amola a faca, Zumbi. arma o fronte, Brizola. preciso dar sombra à bandeira. ver uma filha acordar, por Olga. por outro pra dormir, por Zuleide. escrever por Carolina, Conceição e o suicídio literário de um silêncio - nítido constrangimento desta História. preciso beber Lima e seu rancor à burguesia. trazer à praça os poetas: desonra-los todos em uniformezinhos da oficialiesca conformidade nacional (incluindo seus jetons) e enquanto acotovelam-se pela eficiência do século, deixar com eles, devidamente inflamado, Roberto Piva e seu livre-arbítrio. preciso tomar a minha rua como um príncipe e como um capitão de areia; juntar os meus, confessar o público até ver o fútil esgarçar ver tremer a espinha gerencial da tradição em meio ao miasma rubro e enérgico de um coro de nãos. preciso dispor o meu campo de ação e sonho a algo que se abrace. cumprir essa culpa surrada, redimir à maioria na volta perdoada do ausente. ser a profecia de um padre cego como ser minha terra. preciso não me entender. e me permitir. erigir ao cerne do hino, num poema já escrito, essa aporia comovente: meu povo. meu abismo. * foto de família vejamos o sr. abutre, pelo orgulho ao novo sapato e seu sorriso de subalterno sustenido logo iniciarão as comemorações em torno de sua impune e cáustica bola - como o irremediável beijo ao pai: incorrigível ausência. ubíqua ordem. herói de seus boletos o pequeno abutre, extensão perversa de narciso, como numa rinha de galo, estufa o peito de toddy e épido às ordens da vida. ganhou diplomas e adestramentos invejáveis. trancou o cu, o nariz e a consciência e já conta cinco mil reais e a costa do sauípe. cumpre o patronato com a soberba de um tíasos não se espanta por precaução, trai sua namorada. peida no escuro e presenteou papai ao mocassim marrom na troca do engraxe e calçar a fôrma aos sábados. o velho abutre não se permite menos. tem astúcia e malícia nos seus contos em que as mulheres lhe choram sobre os ombros os filhos abandonados em decúbito dorsal por seu piruzinho de ferro. [enquanto assopra seu argumento no castelo, sua filha chora um poema.] o sr. abutre é o sim cínico e sei que dorme em posição fetal no recolhimento do imposto de renda. em desesperada alegria urge na sra. abutre um sorriso conformado às bolsas, miami, cadeiras ocupadas no jantar e a família: mentira dos retratos. iludiu-se, entregou-se, acostumou-se, abandonou a si, o tesão, a aventura, a voz e o abraço. cumpriu todos os ritos: é uma mãe. chora escondido. (sonha com valsas vez em quando.) uma vez por ano o registro sustenta tenso a ordem desses rostos fraturados. não sorriem mas suportam, lado a lado, cada um com sua concessão dominical, seu medo da vida. sua adequada solidão. * itamambuca cumprir as manhãs como as frutas. pisar a terra. acalmar as raízes. reconhecer entidades. ilibar cantos. consagrar pedras. perceber a lua iluminar o ladrão de flores. carregar alguns versos. pertencer o azul chegar aqui: eleger uma ilíada. poder inventar o dia claro. |
Histórico
Janeiro 2021
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