o luso-marceneiro
desconhece o pau-brasil porém é mestre em bricolagem do fundão - creio que fica a leste não é lá grande viagem e concebe baloiços, mesas, coroas, anéis, cofres, os unknown pleasures do joy division em alto relevo; me pergunto qual é a sensação de tocar num prazer desconhecido é, na mesma, um prazer? ah! quase esquecia! também corta a laser mapas de cidades posteriormente dependuradas nas paredes do diogo cão - onde não há nenhum diogo tampouco um cão nos confins de leça em cujas palmeiras não gorjeiam sabiás * a crista de galo invertida são os pequenos lábios por vezes sagrados por vezes sangrados como o cristo ou a crista sagrada, sangrada, sacrílega * a angústia do âmago pode dar alguns frutos do meu estômago (adubo e regurgito) subindo pelo tronco às vezes, ainda que silenciosamente, direcionam-se à mente: brotam - ou florescem? - palavras sua performance perfuma minha dor
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Eles vieram de longe, com seus cavalos domados. Não tinham face, ou melhor, a face era a mesma em cada rosto. Como nomeá-los? Cada qual ninguém podia. Eles vieram levantando poeira e espalhando mortes no caminho. Lanças em punho. Trespassando quem fosse que se pusesse, por determinação ou por desatenção, pela rota que costuravam com ímpeto sem trégua. Sede e fome foram contornando os espaços que deixavam pra trás. E o sol já não nascia. Pura noite apenas valia. Danadamente escuro. Talvez pra sempre. Sem estrela e sem lua. Breu de homem não saber mais amar. A terra pisoteada. A terra devastada de solas de cavalos robustos, domados, quem visse até pensasse assim: não são homens, são meio-cavalos, centauros, quem sabe? E eles vieram.
De longe. Mas nós não queríamos saber. Lá tínhamos tempo de ser apegar a mortes que nem eram nossas. Coisa dos outros. Eles que se carpam. De a sós? Sozinhos. Sim. Nós que não. Bem estávamos com nossos campos bem verdes e nossas fontes de translúcida água, boa de beber. Sede nenhuma. Só vez em quando, do céu branquinho de nuvens, caía um pouco de substância escura, resto de queimada, quase que sinônimo na aparência: pena de urubu. Mas não era. Era de fogo mesmo, matéria fundida. Mas longe daqui: a salvo por cá – todos. Mas eles vinham. Vinham? De longe. Longe sempre pode ficar pertinho. Longe nunca é longe muito tempo. Espaço se percorre, sem percalço ou com, de cavalo domado, rápido e ligeiro aqui estariam, se a gente prestasse atenção. Que nada. Nem muralha nem muro. Deixávamos seguir. Vida que vive: sobrevivendo. Eram três, talvez quatro, diziam. Como no livro. Cada um com seu jeito, sua malvadeza. Barriga-Vazia, Belona, DosDores e Fim. Sim. Fim assim como fim a gente escreve quando acaba a história: boa ou má que seja. Mas ainda não. Sandra até avisara, lera nos de dentro de uns bodes, que coisa ruim chegaria. Ouvidos cheios de vento, nada de ouvir: zumbido apenas o que ela dizia. Doida de pedra, se é. Deixaram de falar com ela. Fingiam nem ver. Ficou acanhada, dentro de casa, cercada de estacas, sem mais sair. Coitada de... pois é. Nem trombetas ouvimos. Só a terra a se sacudir. Tarde demais. Já. Lá no horizonte – sua linha – a comitiva vinha. Suas bandeiras hasteadas. Fuga agora. Nem há. Chegaram como se nem pudessem, vieram de onde não críamos, criamos o nosso pesadelo e real sem ser sonho aqui, nesse momento. Penoso. Eles chegaram. De. Longe. Papel, tinta e palavras? Tem de sobra. Mas quem escreveria? Acabou-se a hora. Nem sei como termina, ou quem souber, quem vai contar? Que alguém conte. Vai que se sabendo antes, desse jeito depois não se repita. Talvez logo já a lança atravesse meu peito, meu bucho, sei lá que parte e o sangue jorre. E a caravana parta levantando poeira para outras bandas. De pra lá da beira dos riachos. Sem ninguém que avise? Difícil saberem. Como nós, talvez só saibam no acima da hora: quem pode pegar de tão alta? Talvez nem vejam de onde vieram, e só sintam no minuto marcado o fim sem fim. O sol escuro. A carne aberta. E a terra trêmula. Pai, mãe, filho, filha, tio, sobrinho, afilhado, a matilha de testemunhas de Jeová agremiada, uniformemente vestida, sorria em direção aos estores levantados por incauta mão de escritor, de pseudónimo Borges, em homenagem ao autor argentino que, depois de cego, passou a ditar os seus livros. Também este Borges lisboeta ditava os livros, ainda que lhe faltasse alguém disponível para executar as funções de redactor. Com um rol de soluções ao seu dispor para afugentar os predadores — voltar a baixar os estores, acenar adeus, perseguir os tipos à vassourada, disparar um tiro de espingarda para o ar, numa de assustar — , Borges, dado a dramas, optou por aquela que mais talento e sacrifício lhe exigia: tombou no chão como se tivesse morrido. Sustendo a respiração sem conter as subidas e descidas de independentizada pança, lambido repetidas vezes na face pelo caniche que a sogra, amante e valioso pilar financeiro, adquirira fazia seis tenebrosos anos, observado pelas testemunhas de Jeová como se de pintura de Picasso em exposição no museu se tratasse, Borges foi assaltado por um raio de inspiração ou urgência criadora, um turbilhão de líricas e perfeitas frases, de complexíssimas personagens. Um romance – obra-prima, combinação de Cervantes com Tólstoi – desembrulhava-se-lhe dentro do crânio. Mas não queria dar parte fraca. Não daria o gostinho àquela gente que todo o santo domingo lhe batia à porta. Não abriria os olhos. Tinha traumas com testemunhas de Jeová desde que Sandrina, grande amor liceal, terminara relação argumentando que a fé e a fidelidade à seita valiam mais que o amor carnal. Por respeito à defunta relação, Borges permaneceu estirado no chão frio, lambuzado de saliva canídea, enquanto o romance da sua vida se escrevia mentalmente. Inúteis foram os clamores da caneta. Não tomou nota de uma só sílaba que a imaginação lhe ditava. Despertou com um par de estalos da sogra, namorada, regressada da mercearia.
Vinte mãos de papel ou quinhentas folhas
Em prol de um diálogo as damas de companhia descem e nas mãos um vaso de pedra sem contracção de sílabas nem de vogais Senhoras de vinte mãos de papel para elas qualquer distância oferece o narrar fiel das letras gregas sem impedimento na hora e sem aspirador ligado mas sim com o rebordo do chapéu que incorpora o arame de um salto livre composto de cobre e de bronze São senhoras de quinhentas folhas de mau agoiro acreditam nas manchas dum grito nu de alegria sem sumo de laranja sem dores de costas Hipnotizadas em frente à televisão mastigam o desfile fotográfico ruminam o mal-estar sonoro revisitam o dia e a publicação de contos policromáticos pintados a cores roubadas a um negativo dos anos 80 acabado de sair da fábrica da Agfa * História alternativa do Silêncio Em mim escondo uma outra história do silêncio um silêncio menor uma mancha sossegada escondida de baixo da roupa enquanto sofrem nuvens e explodem astros milhares de anos algures no espaço de um segundo Na minha história o silêncio faz tudo o que faz em silêncio tal qual um canto efémero amarrotado nas margens íntimas do ritmo da respiração. Um silêncio escondido nas amêndoas e no vinho doce do domingo de páscoa do meu país antigo. Um silêncio que faz tremer as poucas gotas de água no fundo de um ibriq sozinho em cima da mesa da cozinha numa casa em Berlim vazia numa tarde quente de verão. Protelariado / Ladaínha
A ilusão desta cidade, facilitada pela luz de setembro e a pedra calcária, pelo reflexo das caras no Tejo – que nunca cumpriu a sua promessa. Vale o que vale, mas não vale o que valho. (Repetir até a exaustão ou até à fé). * Algures Entre Poiares e a Estrada Nunca mais lá voltámos, mãe. Os adolescentes fazem a vindima, Os estrangeiros fazem volunturismo nas linhas do vale, E nós nunca mais pisámos as uvas naquela cave escura, mãe. Não sei se foi porque quando o sol se põe no Douro, o rio se transforma em espelho. Fazia-me impressão nos pés (ainda por calejar) sentir o sumo sair e colar-se à pele, As uvas desfeitas, a cor arroxeada daquele sangramento, A parede de fora com o Rover estampado, O barulho de tiros contra os troncos de árvores no roseiral, Uma mágoa mais profunda do que o medo de água da Titi, A mentira – a vossa mentira, a mentira de uma promessa que te fizeram ao nascer e nunca se cumpriu, a nossa mentira cúmplice – A vontade de encher o coração com cada vez mais doces variados da Cilita, O enjoo irremediável de todas as viagens, A imposição de “fazer sala na varanda”, Uma mão vermelha para sempre marcada na minha pele – cinco dedos desenhados pelas tuas lágrimas num tom de vermelho que de rosa e roxo parecia bordeaux, como aquela papa de uva que se pisava, O cheiro a homens, E o medo de existir mal. A vergonha, mãe, A vergonha. Hoje gostava de tentar pisar as uvas contigo. Família de casas de pedra e madeira em retalhos cortados e “distribuídos equitativamente”, Quando não há forma de se calcular o que se perdeu para se defender meia dúzia de metros quadrados de memória. Como é que se perde a memória, Mãe? Mãe, A tua perseguição e abandono concomitantes partem-me o coração. Como é que numa casa tão grande só cabem objectos? Uma casa maior do que um só passado, Apenas preenchida por balanças e solidão. Está lá instalada há séculos no salão grande, No armário onde dormias, Num sótão desenhado por ideias de filme, Num tomate coração de boi – Coração como o teu, mãe. Tomates como os teus. Não há nada mais hereditário do que a solidão. É outubro e sol já se põe sozinho, não precisa de empurrões para mandar parar o dia: O dia pára porque começa a ter vontade de descansar a tanta vontade de viver. É um novo começo, os livros encadernados e a mochila nova, O fim do ciclo de vida daquela fruta toda, A festa (ou o funeral), E tu perdida no meio de irmãos, de pais, de marido, de vinhas e olivais. Tu perdida com 7 anos e nariz a mais, Tu sem voz aos 37 e amor a menos. O dia fugia com demasiada beleza na perdição daqueles socalcos, E eu sei que havia cobras, mesmo que me dissessem todos os dias que não. Um dia vi uma. Um dia senti uma. “Não é venenosa, mas vomita-te para cima”. É como ter piolhos por ser loira – há coisas que se merecem à nascença. Tu não merecias onde nasceste. Estou sem vontade de lutar por mim, mãe. Queria antes tentar lutar as tuas lutas, Vencer o teu cansaço, Voltar a um tempo e saber onde é que foste feliz. O que é isso de ser feliz, Mãe? |
Histórico
Janeiro 2021
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