Tabacaria
Foi neste banco que tirámos a prova dos 9 como quem arranca as portas do coração e o entrega à vadiagem dos sentidos. A esse banco, que não pode mais ser este banco, eu torno todos os santos domingos para beber um pouco mais do nosso sangue até secar a língua a ferro. Nos dias de semana, aqueles em que vestimos as peles de cordeiro e mentimos trapaças que de nós façam hábeis asnos, fazes perguntas sobre arquitectura, sobre como levantar um lugar vazio: é mesmo possível erguer paredes e dentro fazer arder corpos? Costumo responder-te, quando me vejo amiúde no banco, ao domingo, que não houve senão ausência a manter viva a chama do cinzeiro a que nos acostumámos a chamar casa. * Glossário I As baratas constroem a noite no subsolo do apartamento, igualmente a (rare)fazem além-tejadilho. Imobilizam-se, e a um determinado estímulo reagem eufóricas, espavoridas. Faça-se, todavia, uma advertência (está na moda e é um por cento das vezes necessária). O perigo é latente: isso das baratas serem tontas deve ser inveja popular, presunção de fazer caber um modelo na frase à deriva, caminho avulso no meio da pedra, a ânsia pisada por uma canção compensatória. Um palmo de pessoa na testa a medir fervuras. Eu acho bem mais eficaz falar do medo para o desviar, fingi-lo oculto debaixo da língua jorrante e eventualmente, em redor do fogo, com os amigos, tropeçar nele e rir, como a literatura ensina. Eu gostava de ser como as baratas (o ódio é o amor selvático na pequena eternidade dos quartos): ágeis no abandono, persistentes na repulsa cadente que vão tecendo pelo caminho fora. II Que significa a viagem? Que no silêncio eu carregue os mortos Que me acompanham. III Se me vens decifrar, mato-te. E, cuidado, que eu sou versada é em torturas.
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quando aquele primeiro feriu-te a pele com a ferrugem das espadas abriu-se o canal estreito por onde nosso sangue padece. mas enquanto houver pássaro que repouse ao relento e construa nas entranhas o abrigo para as horas serei a vibração na qual doem as palavras a memória a corrente demorada do canto até tuas veias * ninguém ouviu quando os primeiros pássaros tocaram o chão e as flores despertaram do sonho do tempo mas continuas a procurar esta canção antiga na memória das campinas e cresces lentamente com os teus ouvidos dispostos sob meus seios sabes que desejas um sítio tão imóvel quanto este e que toda a ideia de uma criança nasce a partir daí ardendo como um mistério e coberta com o sangue de um país encarnado fluindo em meio às parábolas do girar dos anos mas também sei que a tua infância se multiplica através do mesmo idioma e hei de separar nas tuas mãos o joio do trigo e cantar mais uma vez sobre os corações que pulsavam nos campos onde a fome era o desejo e as preces das manhãs reuniam a luz dos deuses sem nome e sem escuta deste mesmo céu dilacerado * é difícil o mecanismo do silêncio a princípio, as extremidades falam e o corpo inteiro é a morada do fogo não há uma só palavra que não tenha sido consumada não há um só espinho que não tenha entrado no coração dos homens e todas as flores crescem com o sangue dos amantes então os batimentos dançam como anjos machucando o solo as raízes não o sabem, mas por elas anunciam-se a morte, a beleza é por elas que os mortos nos ensinam a cair (os vivos é que não voltam) e que assim é o verbo dito ao seu tempo não se entende a sua face oculta nas noites desertam-se então as cinzas chamam ao vazio o seu lugar secreto feito de suor e ruínas de uma civilização insone mas é preciso cegar-se é preciso tatear no escuro o véu que jamais se rasga e no perfil agudo dos pássaros que ainda cantam forja-se um eco inventado para suportar o peso do interior do mundo Pontes dentro da boca
o grito é o princípio faz ou desfaz um encanto quando grita (não quando canta) é que levanta a poeira nem o riso nem o pranto o remédio é o grito e o que vem depois do grito um grito bem dado, pode chegar à velocidade de 340 m/s e o eco do grito é ouvido 5 segundos depois de o grito ter sido dado em 2010, um concurso de grito queria descobrir quem gritava mais alto na província de Hangzhou mas ignorava os critérios de grito mais longo, grito mais agudo, grito mais grave, grito mais urgente, grito mais alarmante como quando os bebês gritam (e não choram) e dizem com isso: me pegue, me alimente, me console, me ame então ensinamos pros bebês outra fala que domestica melhor os sons e insere tom e uma intensa carga lexical (cheia de truques que evitem gritos) embora nossos ternos e civilizados sons possam soar como gritos para ouvidos mais sensíveis a certas quantidades de decibéis e, dependendo de onde se fala e se ouve, no Marrocos ou no planeta TrES-2b, um grito pode ser um som ínfimo um grunhido ou um sussurro e pode não ter poder de desfazer qualquer maldição John Cage disse que amava os sons do jeito que eles são porque o som é o único significante sem significado (mas me pergunto) e o grito? Edvard Munch quando pintou O grito recortou um grito (dentre os possíveis) e derreteu a tela em cores e formas surreais quem dera todo grito fosse assim tão figurativizado pois quando eu grito às três da tarde e o sol é ameno, o ar é fresco os pássaros cantam eu não sei o que meu grito diz e me pergunto se o eco me engana e por que diabos eu não falo a minha língua? mas se é possível medir o grito, verificar sua temperatura e pressão atender o seu pedido e ouvir e curar a dor grito, tento me acostumar comigo * como quem faz um filme todo poema é um filme mesmo que pareça uma música mesmo que tenha o de se nho de um qua dro cons tru ti vis ta (mesmo que faça vista) todo poema é um apanhado de vontade de dizer uma coisa ou dizer aquela coisa nenhuma, exatamente essa que o cinema fala mudamente todo poema é um avião levantando voo e o mato na margem, dançando de maneira absurda surdo pelo som de turbilhão na turbina surdo porque já não pode ouvir nada além de um som vazio na cabeça e uma imagem vazia diante de si (o olhar fugidio para chão do corredor) (o olhar fugidio pela pequena janela de vidro duplo) o olhar vazio que um céu imenso lança tudo como imagem posta diante de uma câmera que olha tentando criar sintaxe, pensando em fazer verso como um Pero Vaz, como um Marco Polo diante de Kublai Khan como um Victor Hugo cortesão, como um Camões de páginas molhadas com um antigo poeta, cantando como belas as guerras barbarizantes cantando como quem faz um filme * na faixa de pedestres mais próxima sonho um poema de amor que seja como um mergulho para dentro da realidade como vou no fundo da sua podridão e não te retiro de lá - porque não é possível - te contemplo ali no meio do caos do trânsito da fumaça escura dos automóveis e os trombadinhas curiosamente subindo a rua em patinetes de caríssimo [aluguel te encontro ali onde também sou pura destruição meus sapatos estão em frangalhos - e isso é metonímia pura - eu sou esse estado informe te procuro ali também é ali que estamos todos te encontro no mundo, porque você está em mim então tateio o mundo que está em toda parte esse ali-aqui esse todo-comum não é fácil furar a carne, tirar o sangue os pesados órgãos, a pesada pele abrir o vácuo e ocupá-lo mas é o único movimento possível nessa puta valsa louca dei o que tinha
1. te dou de comer na palma da minha mão. é ancestral o gesto de agachar, se reconhece: me curvo ao chão então, você vem, faminto. não distingue entre o que é comida e quem eu sou. penso domar a fera, as pontas dos meus dedos se vão. não distingo se é dor ou prazer me transformar em seu alimento. voltarei amanhã, você sabe. 2. sequer havia luz, mesmo assim, aprendi a te alimentar primeiro. antes de qualquer verbo ou nome: não havia chamado, ainda não há. embora sequer houvesse luz e tendo, ainda, olhos preservados por você, me guiei pelo cheiro da sua boca entreaberta. agachado, com minha pata de bode, te dou de comer antes de seguir, veloz. 3. esse chão criamos nós a partir do nada que havia: era apenas linguagem. na palma da sua mão dei o que eu tinha, cuspi a palavra terra que você moldou com sua saliva. fez-se lama. nomeamos assim, essa porção ínfima onde deitamos. 4. quando forte, você se antecipa. reproduz meus gestos com uma velocidade maior. trama uma fuga. quando você passa, eu lanço a pólvora. o fim te alcança ainda preso a mim. aqui, agora, explosão diante dos nossos olhos. 5. você escancara essa boca de mundo, tão vazia de dentes, só saliva e oco. você escancara essa boca sobre um corpo crescido do chão, engole tudo enquanto o lodo escurece o que se quer pés. aguardo o que virá: língua, voz, manhã. 6. sobre a lama onde deitamos, passou tempo. confundimos passado presente futuro: aparentam ser o mesmo. na lama onde deitamos, criaram-se frestas, nelas, imaginamos caminhos. surgiram tantos outros iguais a nós. abri uma encruzilhada e te coloquei no meio. de costas, esperei que seguisse. 7. conforme você se afasta um novo dicionário adentra a boca. eu não me viro: enxergo o futuro às minhas costas. de cada verbete engolido você cospe a própria matéria. com os seus passos, vi surgir o vazio. 8. não calculei a medida do quanto permanecer imóvel. olhos fechados mãos fechadas segurando tudo que não existia. enquanto eu me escapava. este estalo inaugurou algo novo: essa dissolução. me tornei poeira, depois de você. Homem do Kilimanjaro eterno recém-chegado feito pedra espreita o mundo. Feito homem sente a queda. * ÁFRICA A máscara pendurada na sala que espanta o mal infinito que nos ronda o agouro que nos liga ao divino é também uma maneira de olhar a boa sorte. * APROXIMAÇÃO Da visão do monte reparo nisto: a pouca neve do topo a falta de árvores você na penumbra. A beleza pode ser isto: a visão daquilo que não se tem. * LITERATURA Uma girafa que parece correr em câmera lenta. * Ao contrário dos leões que descansam da vida debaixo da árvore sob o sol do meio-dia. No lugar da caça do bicho quase não vivo na savana das presas me encontro. Os poemas integram o livro Quênia – poemas de viagem, a ser publicado em 2021 pela Cas'a Edições. |
Histórico
Março 2021
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