Mafalda Sofia Gomes – Espigueiro. Coimbra: Do Lado Esquerdo, 2019. Num dos seus aforismos, escreveu Carlos Drummond de Andrade que os autores só deviam estrear com o segundo livro. Percebe-se a observação humorística: a história literária (e artística, em geral) está cheia de estreias falhadas, havendo muitos autores que rejeitariam mais tarde a obra das suas primícias. Mas não será esse, por certo, o caso de Mafalda Sofia Gomes. Em primeiro lugar, porque não se trata verdadeiramente de uma estreia: antes do volume em causa, a autora foi publicando poemas em revistas (eletrónicas e em papel) e também em volumes coletivos, para além de ter já escrito uma dissertação de mestrado sobre literatura alemã medieval e uma série de artigos científicos, maioritariamente também nesse campo. Por outro lado, porque, como veremos, este é um livro (e não uma mera recolha de poemas) e de uma autora que, sendo jovem, tem já uma consciência literária bastante amadurecida e um estilo bem definido, capaz de cruzar tradição com rutura, muitas vezes sob um imaginário medieval. A primeira impressão que ressalta da leitura de Espigueiro é a de um eu, geralmente marcado pela juventude e pelo feminino, que se expõe de forma corajosa e provocante, apoiada na sua Arte Poética: “Dizes que os poemas começam todos da mesma maneira/ eu quero eu sinto eu quero// eu quero o pasmo da roupa lavada muito corada/ eu sinto-te chegar como a salamandra molhada” (p. 19). Estão aí expostas, de modo muito claro, as linhas orientadoras do volume, que de resto o título e a estrutura já sugeriam: Espigueiro (título do livro), Bulir e Baldio (designação das duas partes em que ele se divide) apontam para um discurso tradicional e conservador sobre a mulher e sobre o seu papel, perante o qual o eu lírico se situa, por vezes de modo combativo e provocativo, outras vezes com um olhar compassivo e terno, de quem – “agora que me furtei ao labor de mil ordenhas” (p. 38) – quer apenas partilhar a sua liberdade: “solta o gado, peço-te,/ pelo menos uma noite.” (p. 38). Esse é o mundo da Doutrina, palavra polissémica que, para além de significar um conjunto de princípios, é usada no sentido um tanto arcaico e rural de catequese; uma doutrina em que são transmitidos ensinamentos como: “afinal, a moral terá tantos casacos quanto cadeiras/ para nos sentarmos de pernas fechadas.” (p. 35). A sucessão dos títulos – Espigueiro, Bulir, Baldio – descreve de alguma forma o movimento por que passa o sujeito no livro. Espigueiro é metáfora de pão, de pousio, de riqueza de futuro, como se percebe por este conselho que se lê em Reprodução I: “faz-te farta como/ um espigueiro na eira” (p. 39). Por seu turno, o Bulir – outro termo com o seu quê de arcaico e de rural – é caminho para esse espigueiro, ao passo que Baldio representa o seu contrário. Não surpreende, pois, que nos surjam a espaços ecos de um mundo rural ou suburbano, geralmente marcado por valores conservadores e estereotipados, vertidos até em forma de aforismo, como por exemplo: “a melhor laranja/ é do teu marido” (p. 39). Face a eles, o sujeito reage de formas diferentes: às vezes cedendo a palavra e expondo-a em toda a sua crueza – “«A minha mulher não usa decotes/ porque tenho os decotes das minhas primas/ o calendário da cozinha onde não cozinho/ porque ela cozinha para mim” (p. 41); outras vezes com o humor doce da paródia – “Esperar que a broa cresça sem crescente/ não é coisa de boa gente” (p. 36); outras vezes ainda com a assunção clara do desejo sexual – “Não há homem/ que me coce/ porque o homem/ que me come/ dorme na nossa cama” (p. 23). Mas há também a recuperação do arquétipo da água que lava e leva: “Tenho tudo o que preciso/ a bacia azul, o sabão áspero,/ o corta-unhas e o boião de nívea” (p. 16). Esse lava-pés não é só uma forma de carinho e de reconhecimento da mulher mais jovem face à mulher mais velha; trata-se igualmente de uma espécie de transmissão de testemunho: “Pressinto que/ as coisas tendem elas correm/ para a sua coincidência// esse é o seu capricho/ escorregam diluídas com as chuvas/ os banhos as cheias” (p. 17-8). Note-se aliás que a imagem do lavar é recorrente na obra, tendo já aparecido na epígrafe, de Ana Paula Inácio: “guarda no seixo/ o teu maior segredo/ e deixa-o lavar-se/ pla água do rio/ que banhou pitonisas e freiras”. Surge igualmente em Terceiro mito da criação, como rito inaugural: “essas pernas que lavas/ frescas fundidas/ nas águas/ do mundo/ que começamos/ agora” (p. 22). Outro modo privilegiado por Mafalda Sofia Gomes para dar conta da sua relação com o mundo atávico e conservador consiste no recurso ao jogo metafórico da grande tradição cultural e literária. Em Reprodução I, a subida de Moisés ao Sinai serve de referência para o processo de transmissão de leis de mulheres: “escrevemos o governo/ umas para as outras/ todas para o mundo inteiro” (p. 39). Também aqui a ironia está presente, inclusive na imagem final: “Descemos dos montes/ grávidas como um legislador” (p. 40). Outro exemplo de grande efeito ocorre em Blandina, em que a história da mártir cristã de Lyon é relida com uma luz de intensa sensualidade: “Ergo-me ampla e abro-me/ à fome, meu altar e tua arte/ na vez em que vou morrer: a multidão ferve e é hora.” (p. 19). É o caso ainda de ‘Bon fils, cher fils, beau fils’, belíssima interpretação do amor de Herzeleid pelo seu filho Parzival, o futuro cavaleiro do Graal, amor esse que vem marcado por um delicado erotismo: “Sozinha/ na plantação de arroz/ vejo submersa/ a minha saia de trabalho/ inchada/ da cobrinha/ lagarta bicha/ que te vi// Como podes/ infante menino/ medrar assim?” (p. 29). São, pois, muito variadas as formas de representação do amor em Espigueiro, destacando-se como particularmente inovadoras as que resultam da releitura de figuras e textos medievais, nítidas afinidades eletivas de Mafalda Sofia Gomes. Caso particularmente interessante é o do poema O que diria Hildegard von Bingen?, que é bem mais do que uma espécie de homenagem à figura extraordinária da Sibila do Reno, a sábia e mística Santa Hildegarda. Reinterpretando a sua figura, a autora apresenta-a como mulher um tanto fora do mundo, cujas normas contraria: “Passeio-me do coro ao dormitório/ vou da torre à sacristia/ na cozinha danço sozinha/ bebo o vinho das galhetas/ limpo os pés aos manistérgios:” (p. 43). Algumas das imagens são tão expressivas como inesperadas: “O meu flanco é o arco da fortuna/ em que correm o tempo e a água/ daquelas que se lavam para morrer” (p. 43); ou “eu sou o olifante de Rolando” (p. 39). É este um dos poemas em que a condição da mulher é abordada de modo mais sardónico, o que é conseguido através da remissão para a imagem animal: “Vejo que as galinhas/ comem os próprios ovos;/ eu como as galinhas porque não tenho flexibilidade/ para comer os meus próprios ovos:// os meus ovos quebraram-se nas ogivas,/ os meus ovos quebraram-se.// Ninguém nunca ficou para ver/ os meus ovos estrelados.” (p. 44-5). Outro bom exemplo da clave medieval é o poema II – Coita, uma espécie de variação sobre uma cantiga de amor de Pero Garcia Burgalês, em cujo centro está uma reflexão sobre o prazer do desejo e o risco da sua satisfação: “e se calha de la teer/ é mort’o gozo de a veer” (p. 52). Reclamando-se herdeiro de uma longa tradição, o sujeito faz parte de uma linhagem definida desde o nascimento, que o afastou dos que “Não comeram as cerejas com bicho/ que a vida serve às raparigas/ Não foram expulsos da missa/ como os poetas da cidade” (p. 11). Não tendo querido aprender “cedo as artes da boa peneira” (p. 11), assume a contracorrente que, diferentemente do que escreve Adelaide Ivánova no posfácio, me parece ir além do feminismo. Sem dúvida que, como aliás já vimos, Mafalda Sofia Gomes expõe, ridiculariza e combate os estereótipos de género. E às vezes fá-lo de modo quase radical, como em Menarca: “gosto que as mulheres sangrem/ manchem/ a roupa interior/ sujem/ a borda dos dedos/ com que escrevem a palavra/ adiante” (p. 56). Mas o humor e a ironia empurram a contestação para uma outra esfera: “Salomé dança de pé/ Teodora te adora/ Gianna Maria, quem diria?” (p. 55). Em Recreio I, por exemplo, fica claro que tudo não passa de um jogo que começa na infância e que pode, portanto, ser revertido: “Os rapazes correm/ e as nossas mãos armadas/ são as mãos que aos rapazes estendemos” (p. 28). Neste último verso – “são as mãos que aos rapazes estendemos” –, que é um (inesperado) decassílabo heroico, está talvez sintetizada a forma singular de evitar o espigueiro que Mafalda Sofia Gomes nos propõe. Apesar da linhagem, o caminho é de cada um: “Quando nasci, não apartei ligeira/ o amigo do joio, a cautela da natureza/ Estendi-me branca na tábua antiga/ à moda do primeiro incêndio da estação” (p. 11). Podemos assim dizer, para concluir, que estamos perante uma verdadeira autora, que se percebe ser também uma grande leitora, como o são todos os verdadeiros criadores literários. Uma autora que não esconde a sua filiação, como não esconde a sua singularidade: a oscilação entre uma naïveté simulada e a frescura de uma provocação medida, uma e outra temperadas com a capacidade de dialogar com uma longa tradição literária em que a Idade Média ocupa lugar central. Vale, pois, a pena estar atento aos próximos passos de Mafalda Sofia Gomes. Porto, 23 de novembro de 2019
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quando você chega à idade que te permite entrar em novos cômodos que te permite entrar no banheiro com banheira por exemplo descobre que as paredes da casa da patroa não são tão brancas quanto você acreditava quando brincava com medo de sujar as quinas ou a bancada de mármore – você pensava é uma grande pedra preciosa quem dera eu tivesse um pedaço de tudo que eu posso tocar com a mão lavada quando você chega à idade que te permite embora o corpo inexperiente o braço fraco ainda estender o edredom com peso de dois do patrão com peso de três ou mais suores descobre marcas quase invisíveis como manchas de iogurte que nem a máquina de lavar nem a mão grossa da sua mãe conseguiram apagar quando você chega à idade de recolher as toalhas usadas vê o encardido nas pontas e percebe esfregando as toalhas (parecem de pelúcia) no rosto (parece de criança) que sua mãe está velha pra satisfazer os desejos dos donos da casa e que logo será você a satisfazer os donos da casa que dizem é também sua mas que você nunca conheceu inteira nem nunca subiu na cadeira brincando de a mestra mandou coroada de raízes do quintal – a cadeira, o chão, as paredes, os cômodos todos sujos de terra. * sentei perto dos urubus o homem que passava disse eu tenho nojo de você expliquei a ele que os urubus procuram na carcaça as partes moles e quentes ele deu as costas xingando e sacudindo as mãos olhei pros urubus eles também me olharam complacentes com aqueles olhos sem branco o homem o seu corpo inquieto era como o animal que esperneia antes de morrer sabíamos no entanto que ele não morreria que ele estava mais vivo que nós que não temos mãos nem pedras nas mãos pra atirar em quem nos causa repulsa apenas alguma intuição de encontrar partes moles e quentes. * a câmera em close na velha a pele rachada do rosto em contraste com a pele mole dos braços do vestido se vê os ossos do peito os seios dois sacos vazios pendendo sobre a barriga a câmera abre vê-se um repórter com camisa de botão de cor tão clara como sua pele tão clara o repórter parece um erro na casa de taipa a velha mexe a sopa com uma colher de pau é sopa de quê de papel close nos olhos de espanto do repórter que já sabia a resposta por que a senhora está cozinhando papel porque não tenho comida mas por que a senhora está cozinhando PAPEL o repórter repete pra causar nos telespectadores aquele nó na garganta porque tenho filhos e netos diz a velha esticando o pescoço onde guarda uma garganta aparentemente sem nó aparentemente sem constrangimento de dizer a própria fome a câmera passeia pela casa panelas e canecas empilhadas um instrumental triste e o narrador dizendo que três semanas depois a velha morreu andei de um lado pro outro o que foi garota não pode acabar assim não é um filme é a vida real e na vida real eu tinha seis anos eu não conhecia o gosto do papel por que o repórter não deu comida pra velha porque ele não tinha comida com ele por que não voltou pra dar comida porque ele mora longe por que não mandou pelo correio porque não se manda comida pelo correio por que ele não pegou comida na casa longe dele e voltou pra dar pra velha ora porque ele tem mais o que fazer então por que ele foi na casa dela hã se ele tem mais o que fazer close no rosto passivo da minha mãe é assim a vida é assim mas ela morreu todo mundo morre não quero morrer com esse engasgo que engasgo não sei deve ser o papel na escola passei a brincar de comidinha socava folhas de caderno na panela de plástico tá cozinhando o quê perguntou a colega chata papel dã tô perguntando o que você tá cozinhando de mentirinha papel eu tô brincando de verdade ela virou os olhos e saiu cantando uma música alegre eu bati nela close na cara de espanto da diretora ela diz não esperava isso de você tão boa aluna tão quieta por quê porque ela estava alegre e qual o problema de estar alegre o problema é que o narrador disse que a velha morreu de desnutrição mas eu acho que ela morreu foi de fome close na cara de todos um por vez segurando o riso de deboche tão boa aluna tão quieta mas doida coitada igual a mãe. A ilustração foi concebida a partir do poema "quando você chega à idade" para A Bacana.
Certas paisagens sempre voltam a nos deter
sobre o capacho da memória A noite então redunda num ar espesso de redoma mas o que é que procurávamos proteger? Havia uma certeza emborcada nas palavras de antes? Sei que o amor costumava ser mais um canteiro entre tantos e o sol ardia como qualquer esfera arremessada Mas então o tempo se contava ainda em dias e meses não em anos e sussurros Sim, certas paisagens continuam a mover-se sob o tempo das partidas Todavia agora andamos por entre os pensamentos como poços cheios de segredos * É com as imagens mais distantes que retemos os rostos dos amigos pois tudo o que amamos é lonjura interrogada Com isto quero dizer que da espera a pele do amor se arrebata Uma abelha zumbindo, um silêncio esmigalhado (com isto quero dizer) não podem se igualar à persistência do amor que se enraiza na palavra * Transumância Para que haja um modo de correr as distâncias sem dobrá-las E de amainar o fogo a fim de que avance pelo silêncio Para alcançar a combustão das chaves na ideia de uma porta Para libertá-las e segurar a distância com as mãos Para aprender a crepitar uma passagem como a uma casa Para fazê-la vir abaixo. E habitá-la à maneira do vento na migração das cinzas É um erro de linguagem, diz Sofia Ferrés acerca do ato de nomear um cão de “cão”. E essa é uma das linhas de força ao redor da qual se desabrocham, página por página, os poemas de Desmatéria (Edições Macondo, 2019). Há, além da desconfiança em relação ao signo, um desejo de se divorciar da cultura humana para encontrar além dela os sentidos originais da existência (“dom de viver sem ciência/ desocupar os olhos do mapa”).
Partindo de elementos sólidos, palpáveis, terrenos até os mais leves, aéreos, voláteis – daí a desmatéria do título –, a poesia de Sofia se arrisca ao dizer não aquilo que é, mas aquilo que seria, não fosse a existência dessa mesma poesia, pois mesmo a palavra em arranjos não ortodoxos é insuficiente para nos mostrar a beleza que o pensamento não alcança (“nesse novo Tempo/ todas as figuras/ como que são outras coisas:/ muito mais belas/ que o imaginado”). Há, também, o reconhecimento de que a existência é imprevista (ao menos para nós, que não podemos inteligir a mecânica dos acasos), daí saber que “cada dia uma construção”, ou seja, que os instantes se fazem em processo, o tempo não está no planejado e, assim como um livro, deve ser construído com a necessária paciência “palavra por palavra”. E mesmo assim saber que há o risco de ofuscar a realidade “se reúno mal as palavras”, como um caminho que se toma por engano e acaba chegando a outro destino. Pode ser que os sentimentos sejam as únicas ferramentas que temos para acessar o que não se limita a sons e sentidos, pois “o amor enfreia as palavras”. Pra quê dizer quando os corpos em contato intuem significados que superam a superfície da linguagem? Ao que parece, o mistério nos revela enquanto explicar acaba ocultando um pensamento “e sufoca-o veloz num poema”. Sem poder participar do Tudo a partir das palavras, é no silêncio (no arredio silêncio) que a busca se faz, na volatização do ser que se congraça com o natural, superando explicações racionais a partir de sensações que só o corpo entende, sensações que superam “a mais ambiciosa explicação matemática”. Da existência mais terrena, palpável, delimitada por data de nascimento, nome, nacionalidade e todos os índices que nos identificam como um ser no mundo (desse mundo) e uma vez que “as palavras/ deixam muito a desejar”, o sujeito poético parte em busca do múltiplo. Indo contra a harmonia leibniziana que diz que vivemos no melhor dos mundos possíveis, a poesia de Sofia rompe, por um momento, com a solidão das mônadas e deixa todas as combinações da existência em ato. Nessa colisão extrema, onde tudo é agora e o sujeito se transubstancia no máximo de si mesmo (inclusive o não ser), somente a poesia poderá realinhar a ordem de um mundo no qual possamos habitar com nossa incapacidade intrínseca de sermos tantos: “estou no centro de tudo/ até que um poema me conclua”. E mesmo que retornemos ao que seja rotina e percamos esse instante de silêncio em que palavras são dispensáveis, que saibamos não esquecer totalmente do que vimos e possamos de vez em quando alterar um pouco o ângulo dos nossos vícios de posição. GENEBRA 1
Na rue jean-violette tive uma varanda era pequena mas tive lá mais de dez pessoas a jantar acabámos com a tequila do antigo inquilino e contámos as luzes amarelas redondas estrelares que se mapeavam num ecrã a seis metros de nós é que o lado de lá da rua era uma parede perfeitamente infinita de varandas que sucessivas compunham um gentil dizer ventríloquo de origem indefinida e montanhosa coleccionámos as diferentes figuras entreabertas (o mafioso gordo em tronco nu e a mulher calada, o grupo de estudantes com flamingos e perucas decapitadas nos peitoris, a família barricada atrás de cortinas bem pregadas de bambu, o senhor que regava flores vermelhas e um dia desapareceu) é uma casa mono-orientada mas encantadora diziam todos os visitantes naquele tom que constata o ambiente em volta próprio das noites em que já faz calor sabíamo-nos observados assumimos a pose de quem partilha uma grande mesa acena a cabeça e faz um brinde discreto parte do encanto e se a este poema faltar uma certa escuridão ela está no pestanejar no intervalo nulo entre duas formas da mesmidade assim rendida disponível ao incauto que nele vir a diferença e a vontade de agarrar o modo o inargumentável modo do que existe * GENEBRA 2 Abraço como os conterrâneos o centrismo do lago fresco, constante onde boiam sobre as mesas longas populares pratos derretidos para cima das fachadas dos hóteis depois de um mergulho no umbigo e de um tram intemporal o 12 que vai para carouge é importante vivermos dentro do espírito da época diz-me um genebrino parecido com o lazio do morte em veneza, mas só no estilo e eu discordei com mais veemência do que é da tradição local citei uma coisa qualquer atraente ideia estrutural ou assim tanta pompa para o apartamento duas-peças de alcatifa verde-alface para que fomos convidados somos quatro e entreolhamo-nos em círculo eu desconfio já que posso estar errada aguardo o café diplomático e adio a decisão * GENEBRA 3 Não sei quanto mede o boulevard carl-vogt talvez três voltas ao mundo em pensamentos e rezas claustrais percurso diário da caminhante pelo paralelismo das vidas em investigação profunda e alheada do grau mínimo de domesticidade entre duas respirações do mesmo corpo e não só * Ele agiu com muita filosofia ah, diz-se assim em italiano? não, em francês e está correctíssimo pois, precipitei-me com filosofia, pensei deve querer dizer com elegância ou seja, tempo para a pergunta certa * Houve um atentado em bruxelas enviaste-me um smile triste eu mandei-te uma piano sonata do beethoven e o poema do herberto, aquele que fala da beleza um pack de humanidade para o consolo dos escombros e da íntima ilusão como a ternura almofadada dentro de todos os lugares por onde passou esta célula de dois soldados imperfeita linguagem secreta para a invenção e o testemunho de uma nova efabulação espaço-tempo desenhavas vasos como o morandi mas eu vou comprar uma roda bem oleada de oleiro * Faz de conta que comer uma maçã é só isto sem bicho sem pântano de fino dedo sobre a pele a eriçar a suspeição de gastar o fôlego em chama medianeira encosta-te ao muro do lote do lado de lá cinco metros abaixo alguém pare um filho o choro é real contra a erva e se as janelas estão de costas para o lugar logradouro o choro só pode ser agouro de uma obstinação luminosa rasteira da marginália escrevi: era um problema de hermenêutica o dos dedos no teclado e o das fronteiras o linguajar do par de jarras em ti pousado como múmias evidentes mesmo se com o sotaque reluzente de enrolar rebuçados que ainda ouço era um problema de geografia entre estar aí ou aqui vim por isso para dentro recebo a corrente de ar mas sei que sou estes ossos e mais adulta me inteiro livre se a mão se abre e o dizer se encaramela, peito aberto à bala húmida que vem, se a rua sobrevive a saber o que revolve no caroço do quarteirão, então o rufar que agora ouço a chegar à minha própria vista saguão existe, de facto existe e nada disto é estanque pode entrar chuva por todo o lado mas também pode transformar-se sim, só não assim não com a camuflagem do ego sob a carpete, assim não talvez com dedicação e uma peneira dos intensos agoras e saber disto foi um raio de sol de alívio e descarregue dos sacos para facilitar a gestação do gesto do arejar completo |
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Janeiro 2021
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