Azul Inaugural
O óbvio tem folhas de chumbo — o vento me respira como faca. Na pimenteira do novo me queimo por dentro. Quero na boca o óleo árido das palavras que não sangraram. As rosas solitárias do ocaso em busca do odor do sol. O meu vazio traduzido em pássaros póstumos. Descobrir as rodas do invento é a maçã do Éden para os poetas. * Stravinsky A vida, ainda que hercúlea, é estreita: não há iluminuras sem o extermínio de uma estrela. Em cada ode, o poeta canta uma morte: como quem recria uma semente de alegria no recreio dos segregados. Rosa primavera sacrificada. Queremos o insonhável: a sagração do juízo inicial. * Walk on the Wild Side para Michaela v. Schmaedel Somos acostumados a apagar os plenilúnios de uma noite na Grécia e sonhar com uma Jerusalém celeste para as nossas dúvidas aquietar. Escuto Lou Reed – a dobradiça selvagem do passeio desejo sê-la, mesmo sabendo que a minha inquietude nunca vai passar. Estamos desacostumados a caminhar entre córregos de abismo que não sabemos aonde vai dar.
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Estou num edifício que são dois.
Ele foi construído para sabermos temporariamente a palavra casa. Antes de ir à padaria, faço uma lista do que levar para a rua: água mapa pedra balão chave carteira caneta sinalizador máscara antigás celular carregador bloco de notas gravador ecobag lanterna e pão. Não esquecer a maquiagem que se usa na rua. Hoje volto para a casa que foi nossa com todas as reformas que ele fez. Tentei juntar alguns objetos que remetiam à sua presença. Arrumei uma caixa limpei-a forrei-a com um pano branco. Guardei nela um cd do John Coltrane, uma luminária que ele fez de uma garrafa de vinho do Porto que bebemos, um dildo que usávamos regularmente, uma caixa de ferramentas, uma máscara que ele fez do meu rosto, mas não consigo guardar os nichos que ele fez na sala nem a parede que ele abriu no quarto. Esses objetos já não eram objetos mas o fato de ele ter trazido o álbum da sua coleção de cds e feito a luminária no chão da cozinha com uma furadeira e me dado o dildo de presente no dia dos namorados e, com todo o cuidado, posto gesso no meu rosto e tirado e esperado secar. Depois de um tempo, lixou e pintou e emoldurou a máscara para que, de alguma forma, eu morasse imortalizada numa parede da casa até, imagino, ter sido acidentalmente quebrada. Esses objetos não eram mais os objetos que ele fez à medida que se transformavam naquilo que ele era. Cada uma dessas peças estava nas prateleiras nas gavetas na cozinha emprestando vida aos cômodos, sem falar nas impressões digitais espalhadas por não sei onde em cada canto da casa e do meu corpo que nenhum banho é capaz de remover. Como estava feliz que ele estivesse ali. Que era ele ali. E agora que salto eu viúva. Poderia pensar em todos os aspectos físicos da morte mas alguma coisa me impedia. Pensar no seu quarto verde no nosso quarto claro nele andando em casa com minhas calcinhas no som da sua respiração enquanto dormia e mesmo nele roncando como na semana passada me acalmava. E onde estava ele que não via o nosso quarto a sua respiração o meu salto. Há um ano estivemos juntos. Vimos a chuva através dos vidros, fizemos a espera, lembro que gostei de ouvir a chuva apesar do cansaço e da ausência embora a casa estivesse cheia e cheia de desamparo. Há um ano, ou há cinco mil anos, não sabemos o que fazer com nosso próprio desespero. Talvez sejamos aquela menina nua que corre e chora, com nove anos para sempre. Enquanto isso, há bioterrorismo e talvez haja mesmo napalm por todo lado, há descaso e há quem publique, há quem exija teste do sofá para publicar e não há comida nas prateleiras. Mas há um programa gratuito de fertilização in vitro oferecido pelo governo húngaro exclusivamente para mulheres húngaras filhas de húngaros para que a Hungria seja devidamente povoada por húngaros. Na semana passada, nos atracamos um no outro como se cada um fosse aquele barco vermelho à deriva do Kandinsky, sem isca e sem âncora, ou aquela igreja vermelha sólida e inclinada que reflete no lago. Como se cada um finalmente tivesse encontrado um farol, tropeço devagar no seu silêncio. Tentando mais uma vez nos atracar, acabamos dormindo e o barco escapa. Como na imagem projetada no lago, a igreja de cabeça para baixo enquanto te agarro pelas pernas também escapa. E não percebemos, por mais que tentássemos descobrir, para onde eles foram. A coisa ia mal. Entre comprimidos brancos ovais e retangulares compridos de rivotril sertralina zylinox olcadil paracetamol e ibuprofeno, uma cara inchada com os olhos ardendo. Logo eu que nunca fui disso. E pior: tinha muito pudor de chorar em público. E agora essa: me pegava com a cara amassada e molhada sem causa aparente, ainda que soubesse muito bem qual era a causa, quais eram as causas, e chorava sem vergonha na rua no ônibus no elevador ou diante de uma coisa qualquer que tivesse visto sem me dar conta. Até que depois de algumas semanas não estava mais triste. Já não chorava tanto quanto antes. Quase não sentia nada ao ver um vizinho atravessar a rua. Os remédios começaram a fazer efeito. Comecei a tirar uns móveis da sala que depois ficou quase vazia enquanto o corredor abarrotado de peças aglomeradas dificilmente me permitia chegar à cozinha. Olhei para cada um daqueles objetos, não sabia se eram tralha, se deveria chamar a Marie Kondo e será que ela viria? Nem era tanta coisa assim, embora para mim fosse. No fundo, não sei de nada. Parece que todos os livros que fichei nos últimos quinze anos não me ensinaram muita coisa e, olha, que li Barthes Paz Calvino e como eles falam de amor etc. Peguei meus cadernos de fichamento. Tenho muitos cadernos. Dentro de um deles, encontrei um pedaço de papel com a letra dele, que se parece tanto com a letra da minha mãe. Era o programa de um concurso para professor substituto. Se fosse hoje provavelmente seria uma foto tirada com um celular, mas ele anotou aquilo tudo pra mim. Um pedaço de papel que cheirei o dia inteiro. Comprei lençóis novos. Os antigos, além de gastos, tinham nódoas de sangue que não conseguia tirar. Um lençol novo. Uma novidade. Era tudo que precisava. Durante algum tempo, pude aproveitar meus lençóis novos. Depois obviamente deixaram de ser novos. E digamos até que ganharam manchas. Ou Não comprei lençóis novos. Os antigos, mesmos gastos e com nódoas de sangue que não conseguia tirar, eram os lençóis onde ele havia se deitado. Ou eram os lençóis onde ela havia se deitado. Não queria, não precisava de nada novo. Durante algum tempo, aqueles lençóis por incrível que pareça ainda me serviram. Depois foram ficando rotos demais para manter em uso. Mas não queria jogá-los fora, não queria outros. E digamos até que eram usados para cobrir os corpos. Num filme de Ursula Meier, uma família mora ao lado da rodovia e, como uma folha se prende à árvore, pessoas anônimas percorrem apartamentos e casas e os nossos destinos ao lado de uma rodovia abandonada. Elas tomam banho juntas, tudo está razoavelmente bem até que a estrada é reaberta ao tráfego aos sons de carros e buzinas à penetração dos odores da fumaça dos combustíveis fósseis e o assalto ininterrupto aos sentidos. Tudo está razoavelmente bem exceto as pessoas anônimas presas num pesadelo surrealista incapazes de despertar. Para voltar a casa tinha um longo trajeto a percorrer. Todos os livros que abro começam com variações dessa frase. Susana regressava a casa às oito da noite. Susana regressava a casa depois de dez anos. Susana tinha um longo trajeto a percorrer. Para voltar a casa Susana percorria um longo trajeto. Susana para voltar a casa dava voltas e se perdia. Susana para. Depois voltei. Chamei a família e os amigos e os vizinhos e disse com alegria Voltei. Depois disse Parti com o que me pertencia, fui para outro continente e lá vivi mas agora voltei. Isso faz uns cinco anos. Ninguém correu na minha direção, ninguém me buscou no aeroporto nem me abraçou nem perguntou como foi a viagem. Agora voltei e já não há música nem pessoas na casa. Perguntei o que havia acontecido e alguém que passava disse A casa está vazia. Hoje fiz quarenta anos. Em vez de bolo e vela, coloquei uma antiga luminária na estante. A médica diz que devo fazer uma mamografia, exame de rotina, e também recomenda congelar óvulos. Lá fora, os barulhos da construção recomeçam de manhã até a noite. |
Histórico
Janeiro 2021
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