A PENA E O VENTO
um rosto fino para dedos longos sentada suspiro sobre a maquete. É uma cidade. Há pessoas? Só máquinas? Que é? Passa o vento envolto em óleo diesel. Há pessoas, quem aspira? Que sente? Sento não à vontade no banco do autocarro A cidade é um papel. Todo mundo já desenhou e ainda quer - Não tem ninguém para pintar. Passa o vento envolto em cigarro O cigarro envolto em papel cidade Nicotina combustível, combustão a planejar o próximo passo Quem pensa? é a máquina, a nicotina? A cidade envolta em fumaça. suspiro profundo desejando um outro vento a ver papéis, a ler navios! café, açúcar... as drogas do Oriente são motoristas para cérebros acelerados afogo, abafo... e o sabiá quase tranquilo da minha terra gorjeando por aqui... vai de carona no metro estampando a minha camiseta. – Veja só o estado moderno de uma menina que comeu toda a metafísica do mundo e os passarinhos nas gaiolas de ferro -- aço fibra de carbono! E sub-existo, resisto incólume nas colunas das horas. Figuinhos para outros mares – vejo pela janela. As pedras me contam histórias que não estão nos livros. Reis tiranos, o vento do norte da África, princesas feias, freiras e um Rio Tinto; atual morada minha. Viúvas cristãs de 1 metro e 50 sentimentos (véu e vestido preto) estendem, diretamente do século quinze, mãos que seguram cravos atrás de um balcão comunista. Sufoco. O vento vem, finalmente, enrolado em azul celeste a soprar em penas verdes jade, mas o vento logo passa. POIS: “Vento azul nas penas jade” era só uma letra de um antigo poema chinês estampado na placa de exposição do museu... Amaço o papel, sigo viagem. * A PEDRA DE ONTEM No limiar quase exato do seixo caminho anacrônica por uma rua do Porto em ritmo de calça jeans. Adventício um som de sino se ergue exausto. Pelo timbre sei que foi repetido ao longo de tanto tempo que hoje corre lento e lato, inesperado e amplo e reverbera na aresta retilínea da pedra velha exacerbando uma perfeita sinuosa quadradura. Hirto, o som atravessa meus ouvidos elevando a hipótese de eu também ser pedra. O traço vibra e se estende longilíneo revelando um passado de cascalho recoberto pelas eras vozes silenciadas no ângulo exato daquela esquina elevam-se precisas as sobras de sombras reergue-se o muro em ruinas ouço rezas em latim de antigos jesuítas – a fuga da minha família, um suave cheiro de pão, tripas para os que ficam. O sino conclui sua história e marca a hora inteira sombras de antanho retornam para o vértice das rochas trabalhadas e meu passo de jeans suspenso já pode continuar... ao lado os carros ditam o ritmo à avenida, que passa séculos longe dessa estranha calmaria. Ainda tento voltar à igreja, à esquina – no mapa procuro algum sentido, nas ruas um sinal mas não há nada que indique qualquer vestígio da pedra, das sombras, do sino, do já passado caminho. * RIBEIRA Antigamente no vale do Sarayu a pele das mulheres enrolava-se em mantras e logo antes do amanhecer a silhueta de um corpo dançava na frescura da neblina – – inspiração, expiração – o passaporte nas pilhas dos livros dessa biblioteca portuguesa. as cartas. luvas, lupas, luz. Silêncio outonal: vento vário. O sol esqueceu sua cor nas folhas que caem. O Oriente nas linhas dos olhos, um ideograma chinês à janela – o verso vermelho, a resistência da terra, sua ira em jejum. branco frio, amarelo de praça europeia, frutas verdes, o mercado, pessoas em labirintos, pássaros míticos em palácios de cristais. O segredo cósmico guardado pelo café da manhã. o pão velho de cada dia já duro no cesto as frutas amadurecem demais nos trópicos, lá é veranico de veraneio. Saudade. as margens da alegria me acompanham pelo metro, um leão lembra guerras inglesas enquanto atravesso o vento meio atrasada... Antigamente, as mulheres do vale do rio Sarayu encantavam com mantras as águas puras e ardiam com o entardecer. , meu verso ondula sobre o Douro como dois navios passando na noite.
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Esta coluna pretende estabelecer um diálogo entre a Poesia e as Artes Visuais, recorrendo a técnicas de colagem para a interpretação visual de poemas (ou excertos de poemas) de autores lusófonos. ![]() Colagem 1:
Pires Cabral, Rui; Morada, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, p. 20. Colagem 2: Tolentino Mendonça, José; in Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa (org. Jorge Reis-Sá), Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2004, p. 154. Colagem 3: Lopes, Adília; in Desfocados pelo Vento - A Poesia dos Anos 80 (org. Valter Hugo Mãe), Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2004, p. 18. vãs
tentativas dizer vã a vida dizer vão o corpo suspenso corpo acima das angulações - pedra desprezo soro bolor - suspenso por simples sugestão certamente indevida de acorde além de toda previsão de lira quebrada porém sentida vão enunciar a perda do amor nos corredores repletos d'ausência prenhe de vontades a repousar no que da carne é outro vão dizer o negativo quando negar é entre mais e menos recurso final - tiro derradeiro - de vida que se quer se-quer-se-quer em flor e desespero * voraz canto manso sob a lembrança das pitan gueiras em flor repouso entorno: agonia noturna fez-se fon te de dia s do aindavirá mais que dor no dourar das gazes sobre sangue e pus do des velo história três passos atrás ela frui no apodrecer do fruto origem o u ausência de forma |
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Fevereiro 2021
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