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"Linhas de Água" de Miguel Abalen

31/7/2019

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إنما الناس سطورٌ كتبت لكن بماء
جبران
As pessoas são linhas, escritas só com água 
Gibran
Reza a lenda
com o passar do tempo 
a essência nas mãos dos seres humanos
assumiu plenamente
a prerrogativa material
venerada
e polimórfica
dos fluidos

O jarro de vidro 
é um líquido
dentro esconde 
a água graciosa
tapada com rodelas de limão
de um olhar alagado 
sempre ausente
sempre fugaz

O jarro contém 
linhas rugosas
entrelaçadas nos cantos dos olhos 
Elas são o além
de um encontro nunca acabado
nas bordas de uma distância máxima
de outras vidas futuras
onde o brilho da pele húmida do pescoço
condensa 
histórias de abandono
coloridas 
com o suor líquido fora 
e sangue quente dentro 

Essa pele morena
pulsa
como um hímen fino sem contracção
como a face de um dado 
de pintas gastas
como o cheiro improvável   
do calcário queimado
ao sol do verão

Ao debruçar do sono
re-aprendi
só a densidade separa líquidos
só um poema infiltra
as escamas finas da pele amorfa
um líquido invólucro de um outro líquido
onde se dissolvem globos oculares
e zumbem os insetos pousados nos muros
a escutar a chuva
e a dormir quando chega o cansaço


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Três poemas de Ramon Carlos

30/7/2019

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Granada

Da mancha no olho casto
Do prurido na pele branca
Dos calos relevantes no pé 33
Das paisagens que sobram na cama
Leio Azevedo por 3,99
O primeiro livro vendido no bazar
Segundo a caixa
Pedido de ordem nas cruzadas
Não sei a capital do Líbano
Sugiro Lindóia do Sul
Muita letra
“Não sei”, por fim, nos une 
Uníssonos
Tocamos cabelos e formigas
Nas paredes mofadas
Nos panos de pia
No pacote de lixo
Na folhagem que atrai abelhas
Nas folhagens que nos une
Que regamos com suco de limão
E adubamos com erva molhada
Assim sentamos à margem
Das tristes notícias do erro comum
Das traças viciadas em naftalina
Dos equívocos das tesouras com ponta
Do nome no lápis sem ponta
Da taça trincada por um erro comum
Dos beijos si-lá-bi-cos 
Voltamos a caminhar
Torcemos nossos corpos 
Na quina do sofá
Na porta do box
Achamos engraçado esse porte de arma
Quebramos, esparramamos
Os cacos da porcelana verde por dentro
Vamos embora, vamos embora
Nosso chão tem carvão em brasa
Nossos símbolos vestem chapéu
Nossa ternura usa bigode
Nossas extravagâncias estão no sótão
Deixo a toalha de banho marcada de cera
Uso dois pingos de gel
Repito a cueca
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)
Cheio de ilustrações geométricas
Mas saem voando, capazes de orbitar
Vamos embora, vamos embora
Ela deixa rastros de primavera pela casa
Ela queima como um verão bêbado
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego
Seus cigarros ardem como incenso
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca
Das patrulhas pelas travessas
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol
Da noite que embrulha a ópera
Dos centímetros que separam metros
Do último furo no cinto
O álibi como um simples não
À margem, à margem
De um confuso ato
Os espelhos podem marinar
A recompensa que nunca acaba
Ela já está dormindo
Minha lira de 29 anos



*



Ritmo sincronizado 

Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
È uma loção para hemorróidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram pra fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge 
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível



*



Morra-me

Tráfego lateral na ponta dos dedos
Deslizam verticalmente empossados 
Pelo limite do engodo caloroso da marginal
Um outdoor repleto de dentes brancos
Endossa o fio condutor como símbolo  
De um viés inacabado
Enquanto isso,
O atraso, a sonolência, as suturas
Repentinamente golpeiam o espectador
É longo o acesso, curto o passo
Serpentinas douradas enroscam nos cabelos
O céu triunfa, refletido nos incisivos
Do outro lado,
Um raio de sol, cruz no anzol
Manjeronas brotam 
Em pudim de argila
Tronco ou cabide?
Miopia, minha pia
Há em mim um manicômio
Que ferve e flutua
Trôpegos, os sons se conectam
 Apesar daquilo, 
A miragem entra no mar calmo e gelado
Trazendo uma névoa elegante
Que faz bactérias chorarem
Esquálido,
O torpor atravessa na faixa amiúde 
Preciso lavar meu calção branco

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Dois poemas de Corina Lozovan

29/7/2019

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Violência natural

Intrigam-me as savanas,
A bestialidade das feras,
O som das serpentes quando deslizam,
Assim como as tuas mãos que acariciam as minhas pernas.
Rasuras,
A psique mantém-se.
Mas a modorra dos dias de inverno arrasta-se
E a guerra não acaba –
Os tanques andam lentamente, disparando.
Quanta graciosidade em monstros,
Esta violência natural diluída nas veias –
O vislumbre de uma exterminação diária
Como hienas no deserto:
Arrasam tudo.



*



Eu sou o Império da decadência

Eu sou o Império da decadência,
A supremacia do ser abandonado
No pavor noturno, que atrofia com o verbo
Querer.
Esta síndrome da aflição: contraditória, sufocante
Incomoda.
Mas o paciente é paciente,
Estranhando a razão etílica,
Disseca qualquer argumento sanguíneo
E repete continuamente:
O bisturi não corta o poder.
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"Tão" de Maurício Simionato

25/7/2019

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​Nem tão 
Longe 
Que não
Nade
Em mar aberto.

Nem tão 
Perto
Que não
Nada 
Descoberto.

Nem tão 
Distante
Que não 
Se esqueça
Num instante
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Recensão a "Os crimes inocentes" (Lisboa: Planeta, 2018) de Gabriel Magalhães, por Francisco Topa

23/7/2019

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Dizem os especialistas – e parece fácil confirmá-lo empiricamente – que é recente e pouco expressiva a presença do romance policial em Portugal. Segundo Maria de Lurdes Sampaio, que fez uma tese de doutoramento sobre o tema[1], “Se tivermos em conta que os ingredientes de mistério ou de crime também não são por si só, isoladamente, traços definitórios suficientes, podemos afirmar, sem reservas, que até aos anos de 80 do século XX, é impossível falar de um romance policial português”[2]. A explicação estaria no facto de o género ser tido como estrangeiro e menor. Seja como for, num país a que não faltam crimes, nem criminosos, nem detetives, nem – sobretudo – consumidores ávidos da espuma que os rodeia (aspeto aliás trabalhado com perícia no romance de Gabriel Magalhães) seria uma questão de tempo até o género se afirmar, embora sem o vigor que o caracteriza noutros países.

A estreia do nosso autor no policial talvez não chegue a ser uma verdadeira novidade, na medida em que ele já andara próximo do género num romance anterior, Restaurante canibal, de 2014[3]. Há de resto uma relação próxima entre Crimes inocentes e muitos dos numerosos e diversos livros de Gabriel Magalhães, seja ao nível das ideias, seja no estilo e, acima de tudo, na maneira de ver e estar no mundo.

Ambientado no Portugal da troika, o romance acompanha um conjunto de estranhos acontecimentos ocorridos no Museu dos Coches, em Lisboa, em abril de 2015: a morte de um guarda trespassado por uma lança, a morte da diretora e de uma das técnicas, o suicídio de outro guarda e, last but not least, o desaparecimento da cadeira de que teria caído Salazar em 1968. Mas para além dos crimes (que neste caso são inocentes), o policial necessita também de um detetive que, através de uma estratégia mais intelectual do que propriamente policial, vá juntando os dados, reunindo os sinais que os outros deixam escapar, até chegar ao esclarecimento total do(s) mistério(s). Neste caso trata-se de uma trabalhadora precária do museu, Rosário do Amaral, que substitui até 26 de abril uma técnica em licença de maternidade. Logo por aqui fica a suspeita de que a detetive é uma espécie de alegoria da História, com maiúscula: a que fica depois da festa, para arrumar a sala e fechar as contas.

Nascida em Aveiro, educada na Bélgica e regressada a Portugal para cursar História em Lisboa, Rosarinho não é apenas a representante da nossa jovem geração de precários ultraqualificados: é também a imagem da complexidade do emigrante, que Gabriel Magalhães tem explorado em alguns dos seus brilhantes ensaios sobre Espanha e Portugal, tanto em livro quanto nas crónicas que escreve para La Vanguardia. Nas palavras do narrador, “Percebeu que nunca se volta completamente quando se volta. Se residirmos no estrangeiro bastante tempo, a nossa pátria passará a ser algo a meio caminho entre duas nações que nos explicam: um sítio em que quase ninguém habita.” (71) Mas, para além disso, que já não é pouco, a figura da protagonista serve pelo menos duas outras interessantes estratégias: por um lado, permite a apresentação de um olhar por assim dizer estrangeiro sobre Lisboa (e, de certa forma, sobre o próprio país); por outro, justifica uma espécie de homenagem a uma das grandes figuras do policial, o belga George Simenon, criador da figura do Inspetor Maigret, que – como veremos – acaba por contribuir decisivamente para o esclarecimento do título e para a determinação do sentido do romance.

É esta figura aparentemente frágil – uma jovem mulher algo deslocada, precária, a dias de ser despedida – que se afirma como heroína de Crimes inocentes, testemunha e agente de um 26 de abril mais simbólico do que efetivo. Com inteligência, paciência e método, consegue provar que todos os estranhos acontecimentos foram crimes inocentes, isto é, nem bem crimes nem bem inocentes; ou ainda, mortes sem um agente explícito e sem uma intervenção pessoal que permita responsabilizar alguém em concreto. Isso não significa porém que não haja um responsável. Na linguagem futebolística que nos domina, podíamos falar em sistema; na linguagem mais explícita (mas também mais doce) de Gabriel Magalhães, trata-se do estado, do país, da nação, da pátria. Já em 2014, na frase de abertura do seu ensaio Como sobreviver a Portugal continuando a ser português[4], escrevera o autor: “Às vezes, parece que o nosso próprio país nos quer matar.” (9). Agora di-lo de outra maneira pela boca de Rosário do Amaral:

– Reparem que, na morte do Santos, estão todos os infelizes de Portugal, meio aniquilados pela própria nação. Na de Ricardo Matos, todos os que são cuspidos para forma e mordidos cá dentro, quando voltam. Nas mortes da doutora Constança e da doutora Cesaltina, vemos as nossas suaves guerras civis, seja por um empreguinho do Estado, seja pelo nosso naco do orçamento, seja pelo poder em Lisboa. Portugal mata, ai mata, sim senhor. (371)

Há nisto uma visão consistente de Portugal e da sua sociedade, a de hoje, mas também a de ontem e a de sempre. Essa visão assenta, por um lado, na imagem da cidadela, que no romance é verbalizada pelo diretor interino do museu, Rui de Mascarenhas, do seguinte modo: “O cerco de Lisboa, acontecido em 1147, nunca mais acabou.” (296) Numa passagem prévia, o narrador, captando o pensamento de Rosário, escrevera algo de semelhante: “O duelo entre Constança de Noronha e Joaquim Malaquias tinha sido mais um embate de uma longa lista de guerrilhas entre os que vinham ao assalto de Lisboa e os que já lhe habitavam as ameias e a torre de menagem.” (208) Quatro anos atrás, no livro de ensaios referido, Como sobreviver a Portugal continuando a ser português, já Gabriel Magalhães apresentara como uma das maiores derrotas desta nossa IIII República essa questão da cidadela: “É como se, nas alturas mais altas do país, existisse uma cidadela que tem muito de castelo de senhor feudal: um âmbito privilegiado, com muralhas, onde não entra quem quer.” (27)

A condição forasteira de Rosário permite ao autor desenvolver outros aspetos dessa visão, designadamente ao nível das relações sociais. É o que acontece com a referência ao exame que uma antiga diretora faz à protagonista: “houve uma inspecção ocular, apenas uns segundos, esses terríveis três segundos em que a pupila da aristocracia lisboeta decreta o estatuto social do interlocutor.” (110) Ou ainda com a abordagem de uma espécie de novo-riquismo cultural patenteado pela figura de Joaquim Malaquias: “O hall de entrada dava-nos um murro de cultura no estômago.” (197) Compreende-se assim o sentimento duplo da protagonista:

Uma pena que era desprezo sem deixar de ser pena. Porque aquele homem se rodeara de acessórios, que no fundo eram amuletos. (…) Tudo isto era um modo de ele dizer sim a si próprio, se por acaso Lisboa lhe dissesse que não: algo que esta cidade faz com frequência a gentinha que venha de Mirandela. (201)

Outro elemento importante da visão de Portugal e da sociedade portuguesa tem que ver com a descolonização e com os chamados retornados, questão introduzida através da figura de Ricardo Matos, um jovem poeta inovador com crescente prestígio, obrigado a sobreviver como guarda do museu: “Esse, coitado, já estava morto quando cá regressou, viajando nesse enorme caixão que foi a descolonização portuguesa. Morto desembarcou em Lisboa, e por cá andou anos e anos, até que resolveu optar pela nitidez de se suicidar.” (365)

Mas, ao contrário do que possa sugerir o que está para trás, a visão de conjunto não é pessimista. Podemos até, mais uma vez, retomar as palavras com que Gabriel Magalhães definiu o seu livro de ensaios atrás citado: um “ponto de vista lúcido de um optimismo pessimista, que nos mostra como é que a nação vai caminhando onde coxeia.” (10) Para isso contribui certamente a maneira de estar no mundo do autor de Espelho meu[5], traduzida numa espécie de falta de pressa de quem parece desvalorizar (e descrer) eventuais impulsos justiceiros que visem corrigir a sociedade portuguesa. Sim, errámos e continuamos a errar; sim, os funcionários públicos são uma casta privilegiada, com “cromos” que se repetem de serviço para serviço (num romance anterior, dissera através de uma das personagens: “Sou funcionário público para isso mesmo – para que a minha vida seja compreensiva comigo. Enfim, para que as coisas parem um pouco quando eu preciso de parar.”[6]); sim, os nossos crimes são quase todos inocentes (incluindo o que vitimou Salazar em 1968); sim, o nosso 26 de abril está por fazer. Mas, como diria Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde. Mais importante do que punir é saber, compreender e reparar o que for reparável. Importante é saber que Salazar não caiu da cadeira mas caiu no chão devido à deslocação intencional do lugar da cadeira em que costumava sentar-se; e que o facto constituiu uma atitude de protesto e de revolta de uma das meninas suas “protegidas”; e que houve (na verdade da ficção romanesca) uma história com essa cadeira, roubada e recuperada duas vezes, numa intriga que tem tanto de policial como de psicodrama. Mais importante do que prender Joaquim Malaquias – em cuja figura o leitor mais desatento não deixará de reconhecer outro(s) ator(es) da nossa triste realidade político-judicial – é compreender as razões que a permitem e de certo modo a justificam.

Acabamos pois por perceber que as referências a Maigret et le clochard não são inocentes. Tanto nesse como no romance de Gabriel Magalhães as vítimas são duplamente vítimas, os culpados não o são verdadeiramente e os crimes não são verdadeiros crimes. Em Simenon, sobra a complexidade do ser humano; em Gabriel Magalhães, fica a doçura da compreensão, que o particularíssimo estilo do autor sublinha.

Esse estilo, que pode chegar a parecer naïf, destaca-se sobretudo pelo inusitado, pela exatidão e por uma espécie de ternura que frequentemente o envolve. Veja-se a referência “[a]o rosado Palácio de Belém, como um bolo de noiva com vários andares” (11); ou a descrição do novo Museu dos Coches: “Tudo era demasiado amplo, demasiado claro: uma chapa cinzenta no chão e uma bofetada branca nas paredes.” (399); ou esta visão da capital: “Dir-se-ia que, em Lisboa, até o frio nos afaga.” (300); ou o modo como evita brilhantemente o lugar-comum: “Os taxistas de Lisboa por vezes são assim: gente irritada com a vida, filósofos maldispostos, Diógenes cujo tonel é o seu carro.” (284); ou ainda, para terminar, o modo como o autor capta uma sensação que qualquer um de nós já experimentou: “Quando chegou a casa, Vasco abraçou-a, enquanto ela descalçava os sapatos, como quem mergulha os pés na água fresca do soalho.” (223)

Se queremos sobreviver a Portugal continuando a ser portugueses, Crimes inocentes é um excelente ponto de apoio, confirmando-nos um autor que se revela inteiro em cada uma das suas obras.
 
[1] História crítica do género policial em Portugal (1870-1970): transfusões e transferências. Tese de doutoramento em Literatura Comparada. Porto: FLUP; 2007.

[2] “Policial”. In BERNARDES, José Augusto Cardoso, dir. Biblos: enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Vol. 4. Lisboa / São Paulo: Verbo, 2001, col. 310.

[3] Lisboa: Alêtheia.

[4] Lisboa: Planeta.

[5] Espelho meu: a leitura diária do Evangelho pode mudar a vida. Prefácio de J. Tolentino de Mendonça. Prior Velho: Paulinas, 2013.

[6] Não tenhas meda do escuro. Lisboa: Difel, 2009, pp. 22-3.
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