Tubérculo púbico
a graça do teu sorriso pálido consiste exatamente na curvatura dos teus cílios evocando mistérios tu, quando surges por toda fresta faz luzir o céu em agonia sei da tua valsa trampolim rosa chá assombro lampião carmim teus pés descalços em assobio eu vela azul acesa com meu alecrim de estimação canto testamentos líricos anunciação velhos desejos arrojo breu a sós tremo de desejo quando teus lábios cercam a aurora a madrugada inteira sabe de ti nua pelos becos menos eu menino selvagem feito de pedra e de pó quando penso na possibilidade de beijar-te todo o universo entra em conspiração vênus, Edith Piaf crispado jasmim rezadeira, água benta nosso giro sagrado confirma que sim eu evoco os orixás sinistros e ponho teu nome na roda do desejo da encruzilhada cruzo os dedos evocando maré alta Iemanjá saudando o dia você batendo em minha porta tu pareces um verso de Lorca eu linha apagada vou crispando minha ousadia de órgão duro e latente aguçando a pele em rebeldia quando teu rastro fios de cabelos caem soltos pelo chão toda rua faz festa saúdo tua calcinha larga verde de ervas da terra brotam suores tua boceta cabeluda raízes aladas velhos tambores odor forte de agonia eu embrenhado no calor do teu ânus você finalmente nos meus braços teu mau hálito, minha possessão ventre lanhado de ervas daninha cuspe servindo de entrada teu olho revirado implorando perdão eu fincado na tua próstata você mãos espalmadas na parede os deuses nórdicos já sabiam de nós. * Tem dias que eu vou pensar em você mais do que deveria Nessas horas, peço desculpas pelos pensamentos obcecados, Por ser um incômodo ao te lembrar do nosso primeiro beijo Ou por ser um peso em vão na porta ao evitar tua partida Têm dias que eu vou pensar em você mais do que deveria Nessas horas, peço desculpas pelas trezentos e vinte e sete mensagens na tua caixa de e-mail Ou por colocar teu nome em quase todas as minhas lembranças E por ainda não ter aprendido a amar alguém mais do que eu te amo Têm dias que eu vou pensar em você mais do que deveria Nessas horas, peço desculpas Por bater tão tarde na tua porta: Cidade jardim é um bairro longe mas que eu amo ter por perto Têm dias que eu vou pensar em você mais do que deveria Nesses dias, peço perdão Por te ligar incansáveis vezes e não dizer uma só palavra Tua respiração é a mesma desde sempre, olha outro dia eu quase morro engasgado com um cacho teu preso na garganta
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Unidades de Medida
Como é que se medem graus centígrados de temperatura de pele, Ou o peso de uma queda súbita de estômago [coração], Ou até a nota floral do meu perfume? Como é que se mede o facto de o teu ter uma só nota? Como é que meço em centímetros a distância do teu pé à minha porta, Dos teus lábios ao meu olhar? [Um dia tentei fazer um cálculo para perceber como é que a travessia marítima se passou a medir em horas de voo. Quando os corações estão perto, o Google Maps prevê uma redução de um terço no tempo de viagem. A espera também é importante no Amor. A distância também é importante para Amar.] Como é que se mede – ou será que é só mesmo o peso que importa, E esse só pode ser medido numa balança de dois pratos Com aquelas miniaturas de cobre que se alinhavam na entrada de baixo ao longo da parede de tijolo. Tem que haver dois pratos, um de manhã e outro à noite, Duas medidas diferentes, seja pela quantidade de àgua que retenho no corpo ou pela falta de massa muscular, Dois pratos e dois corpos. Um antes e um depois. Como é que a medida das tuas mãos ser as minhas Se pesa E porque é que isso Me pesa? * “Mulheres que Escrevem” Ainda não descobri bem como é que isso se faz. Isto. Não gosto que me vejam, mas deixo cair os cabelos no chão como gotas de sangue se me sinto invisível. Se me sinto olvidável. Se me vejo olvidada. O dia vai chegar. Ele vai casar com uma outra mulher que não eu. Ele vai casar e enterrar todos os meus poemas e esperanças no altar de uma igreja bem frequentada, repleta de gente contente por o ver casar. Eu não hei-de casar. Eu hei-de nunca casar. Não é por vingança: é por incapacidade. O engraçado é que nunca quis ter outro cabelo, mas hoje pintava-me de cores. Agradecia uma oportunidade para desaparecer, camuflar-me, esgotar-me noutras paragens – talvez, até, paragens outras onde me ficasse a permanência. Onde me ficasse em permanência. Já não tenho nem paixão nem conteúdo, como é que é possível que me cresçam tão facilmente os seios e as ancas? Isso é coisa de mulher fecunda. E eu tenho a certeza da minha infertilidade. Num totoloto aleatório de vistas cansadas, de ideias cansativas e repetidas, isto é possivelmente aquilo que de pior já fiz a qualquer ser humano neste mundo. E fiz-me a mim própria. Se eu não sei sequer o que é que é ser mulher, como posso querer saber o que é ser mulher que escreve – como posso querer saber o que é escrever? * Poema para ser lido alto por outra voz que não a minha, enquanto a chuva te afoga o cabelo puxado para trás – “Os líricos”, como dizes “Os líricos”, onde me incluis com o sorriso de quem sabe – só para controlar o ambiente húmido cá dentro, só para condensar o espaço, só para manter a segurança de me poderes atirar à cara que ainda sabes quem sou… - “Os líricos morreram todos de fome ou de amor.” (Só se for de fome de amar) Talvez por isso sinta que não como há meses. Mas tenho demasiada raiva para lirismos, Tanta que às vezes a misturo com a serena alegria do dia-a-dia, Tanta que fico confusa quando desaparece sem que repare ou me depare com a sua ausência - Fico confusa e penso “Para onde foi o meu motor?” Mas esquece isso. A coerência nunca foi o nosso forte. Isto era sobre a lírica invenção das minhas dores que por aí andam mas não tenho a certeza de me pertencerem, Ao som do avião lá atrás e do Philip Glass cá perto, Era sobre um isolamento em que me mantenho - E bem – Pela remissão da mentira. Mas eu gosto de inventar E é da minha natureza mentir - Por isso em que é que ficamos? Era um poema da depressão de domingo que baptizei com o teu suor E vi pairada sobre cinco horas Que não existiram - Como aquele indivíduo de que te falei – E a tristeza de perceber Que já em 1946 o Frankl falava desse vazio de Domingo. O que me leva a crer que nada é sagrado E nunca houve coisas só nossas E o espaço entre nós – que eu sinto como se fosse realmente o teu corpo – É, de facto, mais sólido e extenso do que aquilo em que quis acreditar. Ao menos pude ver-te desaparecer da vista, Descer aos confins do meu prédio (como se de aos confins do meu estômago se tratasse) E – sem merdas – morrer em ti. Sou lírica, afinal. “Escrevi-te um poema” diria eu. Apagaria as luzes e do alto da minha ingénua nudez acriançada diria “Escrevi-te um poema que te quero ler.” Porque era dia dos pais quis que não chovesse naquele dia.
Quis todos os ipês floridos porque era dia dos pais. Do sol pensou o amarelo bem forte tal qual ele fazia quando criança, porque era dia dos pais. Naquele dia quis as mãos dele que eram iguais às suas. Não desejou ganhar presentes encomendados, pré-fabricados, disfarçados de amor porque era dia dos pais. Quis apenas chegar na janela, admirar a hora, o dia e jogar conversa fora. Mas amanheceu chovendo. Chuva fina, chorosa, naquele dia dos pais. E embora a janela estivesse lá e ele frente a ela, estava só naquele dia. O filho lá não estava mais e faltou dizer a ele o quanto o amava não só porque era dia dos pais. Faltou colocar sua mão sobre a mão dele e viver a completude entre as duas. Faltou deixar-se beijar, pois dizia sempre que homem não beijava outro homem. Faltou apertá-lo contra o peito. quando ambos tinham algum problema, e se deixar esquecer até dormir. E faltou chorar também, afinal eram meninos e meninos não choravam. Até que o filho se foi um dia. E ele ficou indignado com as pessoas caminhando normalmente pelas ruas da cidade. Algumas até riam, destilavam alegria. Os carros seguiam com suas buzinas estridentes. Freio, só pra ele, que parou e então percebeu o amarelo do sol, percebeu os ipês coloridos, percebeu o céu. Percebeu a nuvem, feito naquele dia dos pais, quando se misturou com a chuva pra esconder a lágrima que escorria do céu. Chorando, ele observou um avião e lembrou-se de que era o que mais o filho gostava de fazer quando criança. antimatéria
antes de tudo, escrevo. do contrário, apenas rabiscaria papéis em um escritório. contaria cédulas e moedas em um banco. ou trabalharia em uma repartição pública. chegaria em casa às vinte horas, faria a janta e assistiria à novela, a um filme ou ao jogo de futebol. depois, sem pensar em nada de mais, sem chance para as lucubrações, apenas esvaziaria da mente o longo dia, números, contas, asfaltos, obrigações. veria a cama, que seria somente uma cama, fecharia os olhos e dormiria. no outro dia, calçaria os sapatos, escovaria o cabelo, os dentes, tomaria o café da manhã lendo o jornal, que seria somente um jornal, e voltaria ao local de trabalho, talvez depois de brigar com o relógio, talvez pontualmente. viveria assim, burocraticamente. e enchendo-me de cotidiano, até o limite onde eu transbordaria, haveria o risco de em mim ainda caber um novo hábito: entre o céu e a terra, enxergar apenas o que é palpável. * (im)permanência meu corpo, a minha voz meus tropeços, tudo em mim será até quando, um somar anuários - de carne e osso sou sujeito a durar pouco (o que vinga a existência, acesso ao infinito, é pedra: em silêncio impondo sua forma, não murcha sob - ou sem - a água) * paradeiros alguns caminhos são tortuosos: levamo-nos (ou nos trazemos) com lentidão ou urgência - de tão labiríntica a vida, nós nem sempre sabemos onde (e quando) vamos parar. * dos devires nada é. tudo está. o corpo que habito, as chagas, as árvores, as fachadas das casas, das igrejas, os lençóis sujos dos puteiros, a saliva dos monges, as línguas bifurcadas das cobras, dos seres vivos à matéria inorgânica, tudo denuncia a passagem do tempo: existir é transmutar. OS CORVOS DE S. VICENTE
Os dias luminosos já passaram. Agora, restam as doenças metafísicas, As viagens aos centros de saúde, Os recibos vermelhos dos desempregados, Os correios privados como o vento Que sopra nos palácios. Agora, os dias são mais longos para todos, O sono é uma pérola deitada Aos donos da insónia, O medo vem nas letras grandes dos jornais, Os livros não se vendem, Salvo nas bombas de gasolina, Os maridos disparam sobre as esposas Para comporem as estatísticas Da crueldade E os pássaros pretos abandonam a barca. |
Histórico
Fevereiro 2021
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