armadura
quando menina apertava os dedinhos na barra da saia de algodão num canto via as colegas bonitas correndo seus corpos de dente de leão suas levezas sem esforço pelo pátio elas sabiam subir em árvores e pular muros e sabiam dizer as palavras exatas para me derrubarem de lá de cima as palavras pulavam sobre meus ombros quando mulher aperto meus dedos embaixo do casaco e crio forças para enfrentar a beleza hoje saio do canto com os ombros tensos para não cair e crio meus pátios acima das árvores e fora dos muros também sou leveza recolhi do chão os ninhos caídos as sementes expostas e dentro de mim habita uma ave há vinte e poucos anos * bisturi eu não quero saber desses afetos da palavra: leia minha poesia me olhe nos olhos e diga se é boa ou má. não me toque pelos ombros não me imagine despida não tome meu partido em rixas. mas me leia como lê os seus comparsas. com o mesmo cuidado e fundura, talvez calma. sobretudo me leia como quem busca os óculos para examinar um corpo. me leia com as mãos cobertas de álcool em gel. eu não quero saber desses afetos do lado de fora da palavra: atrás da porta, tudo é ruído e espera. se quer me ler, leia como alguém que não goste tanto de mim * recruta tenho recusado os convites para servir a exércitos peço perdão aos amigos mas me doem os braços de tanto vestir seus uniformes me trocar destrocar tenho pedido tréguas e assisto calada às batalhas peço perdão aos amigos pela infidelidade a tantos belicismos que lhes cabem crescem calos dentro das botas e minhas mãos ardem feridas de lixívia removendo as manchas enquanto houver sangue no tecido dos uniformes fico só me lembrando de como suas pátrias se reerguem tão depressa e eu acabo nas trincheiras com os tímpanos explodidos e a boca suspirando o cansaço aberta às formigas
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Cantigas da malta à janela [1]
Saber assim longe a Primavera e aquele vocabulário meio gigante que caducou tão cheinho fechou a passagem de mais um ano todo ele a correr fantasminhas de nós mas mais fortes e mais longe pois não obstante o desânimo ainda dá para rir e recupera comando nos símbolos porque só a língua só ela nos vai ficar e de novo então poder dizer passo seguro nos fadinhos se connosco vigiam os metros esse ritmo repara que cai com a calma outra vez poder dizer que os meses agora são uma merda Cantigas da malta à janela [2] E pouco dura a fantasia dessa story mas cuidado é bom aconchega assim um silêncio bacano se consagração do instante ou bucha nos conteúdos mais agudos e durinhos e a graça dos prestígios que pulando nas correntes da tecla descansam as maravilhas em velados e ledos bitaites de tolas companhias só malta bonita e tanta para embalar na gente e sacudir as letras deste vinte vinte tanto faz se no trabalho dos calendários e na magia social poeta bera era mesmo real life honesto estudo na tradição Cantigas da malta à janela [3] Pouco dura esse poema na máquina de um país a passar babugem de velho canto corre torto na janela brincalhão e confiado estimamos esse poema na máquina para connosco desaparecer figurinha querida e audaz que lá se vai aguentando nas palhaçadas da frase já barquinho de Portugal contado e na fala conformado sem pausa nos instrumentos uma beca aqui encostados ocidente no sujeito e os mestres lá ao fundo a segurar as marés são frescas maneiras de dizer ou a gente a escrever bem sabes mas tão só para aquecer (A Francesca Cricelli, que o motivou, e a Prisca Agustoni, que o chamou de poema antes de o ser) Nunca imaginei pensar a vida
como a amarra frágil de um botão numa camisa. Aprender a ver os fios e sua costura, remendá-la ou rebentá-la. Aprender a hora de vestir a casa e a hora de despir-se dela – criar raízes ou ser como folhas ao vento. * diante do espanto performar o silêncio os pés andando em círculos os olhos buscando os detalhes as mãos tateando o vazio * Tento preencher o vazio dos dias com o que me vai surgindo sem que o peça – a espera nunca é ativa, é sempre o outro que não vem, são sempre as coisas, as horas que não chegam, mas entre uma espera e outra algo aparece e vai tomando lugar entre os espaços. São poemas postados alhures, livros que já não acreditava receber, mensagens carregadas de saudade, fotos e vídeos que carregam consigo o riso, a repulsa, a empatia, o choro, um grito de alerta, de alegria ou de dor. Nisso vem uma ideia como uma febre ou espasmo, e o remédio é agarrar o lápis com a mão e deixá-lo percorrer o papel como se as palavras fossem uma extensão de ambos, ou aquilo que a febre secreta para deixar de queimar. Ao fim, o que se esperava não vem, mas isso já nos havia ensinado Godot. * Qual momento a fotografia captura com maior nitidez: o tempo exterior dos relógios, ou o instante íntimo dos afetos? Repouso na tua a minha cabeça, as mãos dispensam o toque, os olhos reluzem como brilha o dia. O que a imagem não revela, mas adivinha, está ali e tem um só nome. * UNA VENTANA ABRE LA NOCHE A LOS OJOS Una ventana abre la noche a los ojos, se hace semilla de las constelaciones habitables de la ciudad que todavía no duerme, y en mi pecho una lluvia de estrellas polvorea de luces las sombras que llenan mi corazón. 1.
Durmo entre um menino e um gato duas espécies quebradiças de fábula rendidos pelo cansaço percebo sua respiração ameniza o pedregoso trajeto entre o sono e o sonho * PEQUENA CARTA Meu bem, te escrevo desde um dia cuja tristeza tem causas desconhecidas o que a torna mais suspeita e absurda Ontem sonhei com você e com teu corpo acordei vivo insubmisso adolescente Algo me assustou. Isto me assustou: o chão como um acontecimento Continuo fazendo projetos todo dia embora uns tantos eu desfaça e disfarce ao anoitecer – a desconfiança que persegue as inteirezas Ontem um desconhecido me chamou por um nome que não era o meu: sorri e consolei-o de sua pequena tragédia – ele que também sabe nome é quase um acidente Os filhos aqueles - os invisíveis - me tomaram pelas mãos e se puseram frente ao desgastado muro amarelo dizendo: recorda como é intenso o mar! * TÚMULO DA MÃE de manhã um corpo sujeito ao frio repetia o nome fixo nas manchas da pedra na folha de plástico orvalhada |
Histórico
Janeiro 2021
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