Cinco poemas de Max Czollek traduzidos para português por Mafalda Sofia Gomes (SpiegelZwEi #2)12/4/2021 SpiegelZwEi é um projeto de Mafalda Sofia Gomes em que se estrelam dois ovos na frigideira, a nova poesia de língua alemã e a respetiva versão portuguesa. Juntos resultam numa experiência gastronómica intensa. Guten Appetit! Max Czollek, nascido em Berlim em 1987. Licencia-se em Ciência Política na mesma cidade e conclui, em 2016, um doutoramento sobre o surgimento e a disseminação do antissemitismo no Cristianismo primitivo. Membro do Lyrikkollektiv G13. Autor dos livros de poemas Druckkammern (Câmaras isobáricas) (2012), Grenzwerte (Limiares) (2019) e Jubeljahre (Jubileus) (2015), publicados pela Verlaghaus Berlin. Dinamizador, desde 2013, do projeto Babelsprech (Fala de Babel), orientado para a divulgação de jovens poetas de língua alemã. Coeditor da revista Jalta – Positionen zur jüdischen Gegenwart (Ialta – Posições sobre a contemporaneidade judaica) e da antologia Lyrik von Jetzt 3 (Poemas de Agora 3). (Wallstein 2015). Em 2018 dá à estampa o livro de ensaios Desintegriert euch! (Desintegrem-se!)(Carl Hanser Verlag).Recebeu o prémio de Literatura de Bona (2017), a bolsa para a residência artística da Kulturakademie Tarabya em Istambul (2018) e, finalmente, o prémio Václav Burian Preis de Olomouc na República Checa. Em 2020, iniciou e foi curador do projeto Tage der Jüdisch-Muslimischen Leitkultur (Congresso descentralizado que propõe uma contranarrativa artística da cultura alemã). Todos os poemas traduzidos integram Jubeljahre. eu dirijo-me àqueles que partiram como pais e voltaram como filhos que estavam no lidl e acreditaram que era hora de tomar os gofres que na alvorada entraram por uma porta e de seguida pediram desculpa que de forma nenhuma se deixam apanhar vivos, cujo corpo de sangue traz coletes à prova de bala // ich wende mich an diejenigen die als väter auszogen und zurückkehrten als söhne die im lidl standen und glaubten es sei zeit zu den waffeln zu greifen die in der morgendämmerung eine tür eintraten und sich anschließend entschuldigten die sich auf keinen fall lebendig fangen lassen, deren blutkörper kugelsichere westen tragen * eu dirijo-me àqueles que sempre quiseram fumar lucky strikes numa estação de serviço que deixam crescer a barba para esconder os dentes que já não têm medo dos médicos que inventam uma arma secreta e que se esquecem dos planos de construção debaixo do assento a caminho do ponto de encontro eu dirijo-me àqueles que têm um cinto para a barriga e uma mala para lugares movimentados estações centrais, grande liberdade, campo de estelas // ich wende mich an diejenigen die schon immer mal lucky strikes an einer tankstelle rauchen wollten die sich bärte wachsen lassen um dahinter ihre zähne zu verstecken die keine angst mehr haben vor den ärzten die eine geheimwaffe erfinden und die baupläne auf dem weg zum treffpunkt unter ihrer sitzbank vergessen wende mich an diejenigen die gürtel besitzen für ihren bauch und einen koffer für stark frequentierte orte hauptbahnhöfe, große freiheit, stelenfeld * (DESCOBERTA DA VELOCIDADE) no início, Josef, ainda é fácil: quanto mais depressa correres, mais depressa muda a paisagem: montanhas rodeadas de verde tropa, trilhos pinheiros como grades não olhes para a nuvem que se levanta como arde o vale o olho da terra está aberto segue-te persistentemente não se permite pestanejar tenta fugir do alvo em cruz esquiva-te durante o dia dá descanso à noite esconde a tua tocha, recapitula a rota avanças mais devagar do que roda a esfera em progresso contra o teu trajeto Josef, iosif, joseph quem foste em quem te tornaste? // (ENTDECKUNG DER GESCHWINDIGKEIT) zu beginn, josef, ist es noch einfach: je schneller du läufst, desto schneller wechselt die landschaft: berge gehüllt in tarnfarbe, knüppelpfade tannen wie hamburger gitter schau nicht auf den nebel der steigt als brenne das tal das auge der erde ist aufgesperrt folgt dir beständig erlaubt sich nicht, zu zwinkern versuche, dem fadenkreuz zu entwischen schlage haken bei tag gib ruhe zur nacht verberge deine fackel, rekapituliere die route kommst langsamer voran als drehte sich die kugel zunehmend gegen deinen lauf josef, josif, joseph wer bist du gewesen wer bist du geworden? * os anões levantam-se e sacodem-se, expõem à luz as imagens da minha mala. a mim ensinaram- -me a usar benzina como sabonete, regras pela regra, nenhum isqueiro à lareira. esta compulsão de fazer de cada viagem um exílio. incêndios nos quintais, desejo-o debaixo dos pinheiros. ontem as florestas ainda eram suficientemente sábias para se esconderem nos museus. hoje a minha nova pátria chama-se vagão se me querem acordar, faço de conta que durmo. faço de conta que durmo, sonho: houve pedras, pesos, que tu expulsaste dos teus olhos. preciso seria autoridade suficiente para dizer “amor” // die zwerge stehen auf und schütteln sich, belichten die bilder aus meinem koffer. mir wurde beige- bracht, benzin wie seife zu gebrauchen, regeln für die regel, kein feuerzeug an feuerstellen. dieser zwang, aus jeder reise ein exil zu machen. brennt es in den kleingärten, wünsche ich mich unter tannen. gestern waren die wälder noch klug genug, sich im museum zu verstecken. heute heißt meine neue heimat mitropa will man mich wecken, stelle ich mich schlafend. stelle ich mich schlafend, träume ich: es gab steine, hantelschwer, die du mir aus den augen räumst. was es bräuchte, wäre ausreichend autorität, „liebe“ zu sagen * o conserto do mundo, talvez quando o vapor da respiração das cabras, quando a floresta, o âmbar, o frio, talvez quando os copos de medir se encherem, talvez quando a terra for tomada, talvez quando nós sozinhos e sozinhos talvez depois quando a palavra casa, talvez quando os amigos morrerem, talvez depois das festas talvez quando todas as nossas perdas, talvez os vasos e a luz dispersa, talvez quando as cercas da escritura, talvez quando não restar nenhuma folha de papel nas articulações dos muros, talvez quando os mortos dançarem talvez de alegria estrondosa talvez quando a luz ao fundo das salas de parto, talvez um conserto do mundo // die reparatur der welt, vielleicht wenn der dampfatem der ziegen, wenn der wald, der bernstein, die eiszeit, vielleicht wenn der becher gefüllt, vielleicht wenn das land erobert, wenn wir allein und allein vielleicht wenn dann das wort zuhause, vielleicht wenn die freunde sterben, vielleicht nach den festen vielleicht wenn all unsere verluste, vielleicht die gefäße und das weit verstreute licht, vielleicht wenn die zäune von der schrift, vielleicht wenn keine zettel in den fugen der mauern, vielleicht wenn die toten vielleicht tanzen vor lauter glück vielleicht das leuchten am ende der kreisssäle, vielleicht eine reparatur der welt Fotografia de Lydia Goolia
Ilustração de Varvara Polyakova
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Estamos velhos, criança
brincávamos a alguma coisa. dizem as fotos que sujávamos as fraldas e as mãos de lama. levávamos depois as mãos à boca e sorvíamos a terra mole. no segundo seguinte acordámos engolidos por um relvado pisado e molhado, mais castanho que verde. não há máquinas nem fraldas nesta fotografia que ficou por tirar. estamos velhos, criança. hoje é a terra que nos come a nós. * A consciência do apocalipse um vizinho lia o céu há dias partia da varanda em viagem anárquica à porta do mundo. no andar de baixo, uma mulher embalava o filho enquanto me oferecia diferenças por resolver. invejava-lhes a consciência do apocalipse ou a inconsciência de tudo. ao longe, uma sirene. * O primeiro pêlo branco faltava-lhe o relógio no pulso, sobrava-lhe a certeza de um atraso inventado a amparar-lhe a vergonha. sonhava-se observado, a nuca febril a expulsar a convicção de ser olhado por personagens que inventou, antepassados que nunca viveram. sentia-se sépia, flor adiada por parasitas que lhe comeram a cor. suava o suor dos falsos alarmes quase tão assustado como ficou com o primeiro pêlo branco que encontrou no peito. * Lá onde se escondem os pássaros os jacarandás acordaram hoje roxos as folhas verdes de outrora uma miragem. um relógio arrítmico pontua o silêncio. os pássaros continuam a cantar ninguém sabe onde se escondem. só confio no pó para me explicar o movimento ácido do tempo. pela janela lançam-me um fio de luz uma corda incentivo último à deserção. * O luto dos teus olhos o sol caía no luto dos teus olhos. o silêncio do choro contido interrompido por tratores. a faca a pressionar o estômago. crianças corriam à frente da capela, não havia forças para as mandar parar. um ecrã passava fotos dela lembrava-nos de não olhar para o caixão. os da primeira fila carregavam as múltiplas variações do horror nos rostos. o silêncio de uma banheira a meia luz. um dia bom na aldeia, portas e janelas abertas. não se via tanta gente junta desde a última. digo meus lábios navegando nos teus seios
como que segurando o mundo trémulo áspero as veias da cidade incendiadas sufocados pelo seu negócio seiva de engrenagens sorvidas pelo seu próprio desejo o grito tomando o lugar da boca projectando-se no ar belo perdido letal de pátria apenas conhecemos na infância um lago cavernoso de animais largando longos bafos quentes de vício a praça dos poveiros que tal como grande parte do país literário foi colonizada por turistas de gin na mão fomos-nos perdendo menos absurdos menos belos demorando a morrer e ainda que me tenha segurado em fios de elétricos que hoje se prontificam a ser removidos ainda que tenha descoberto na fula carnavais ditosos cujas ressacas não guardaram como que uma Revolução que se pudesse afirmar como um gesto poético autêntico digo concretizado ou pleno como podres plenos dentes os teus são tenho ainda alguma inesperada relutância ao ver-me musgo nos pilares de mármore siderais e geométricos desta grande civilização - ó vindouros ciumentos como anjos - que inaugurou a época do saque * I Falar-te da raiva do choro esquecido nas sombras das fábricas de entre a dolorosa luz das lâmpadas onde o outro descobriu a histeria ter descoberto a fome a miséria a escravidão ou a tua cara devorada pelas seis da manhã bruta fúnebre esquálida viciada tesão das tuas costas plenas como magma arrancar-lhe as escamas uma a uma com toda a dor e todo o mal o espectro de uma civilização lavrada pelo medo II a criança leva-te pela escada esta é a morte dos seus antepassados seus ossos são o que resta dos seus gritos afiados brancos inexpiáveis relíquias tabacário solaz promessa de meia-praia a impaciente aurora dos punhais III nas suas goelas ouvir as cordas das pontes a içar o turbilhão doido do sal no vento preparado para descobrir o amor IV- o Forte tinha razão entre carrasco e condenado não há diálogo diálogo é entre camaradas amantes gargalos alimentados pelo mesmo grito combinações análogas de cocktail molotof preparadas para explodir quando como que acreditada a primeira palavra for dita. * I uma praça como um delírio aguardado subitamente lapidada da sua pele como que florescendo para o mundo trazendo nos doces leitos das suas carruagens os sonhos roubados dos terrores nocturnos povo exaurido em suor frio digo P-R-A-Ç-A mas deveria dizer mercado lota honrável da pátria o nervo do cavalo excitando a plateia da gordura régia. II Invertebrado como a luz solar tu iluminaste este lugar e se teus dentes são de vidro lança TU mais uma vez a tua paixão sob os astros cemitérios sangrando sobre as testas dos filhos dando-lhes nome fardo linhagem patriarcal arsenal de raiva honrando as lápides com narrativas do veneno traições em barda barricadas de sonho quem fez cesariana na tua boca ensinou-te que rasgando a carne a canção é autêntica como um tornado enojado pela abundância ou uma aurora escrevendo o seu nome nas nuvens a fome legitima-te a comê-los a tua fome justifica que os comas III A poesia não está nas palavras as palavras são a crosta da poesia como uma ferida, cicatriz pela estranha recordação da guerra que provoca as palavras recordam-nos da poesia porque ainda não é tempo de parar de matar. * Não conhecerás a noite enquanto não domares o fogo não como quem seduz a morte no ofício temporâneo do cutileiro nem tão pouco como quem a deu a conhecer ao povo com suspeita clareza confiança no futuro mas como quem nunca estranhou a presença do sal na madrugada do rosto sabendo onde a corrente leva os seu fantasmas para lhes dar carne encenar a sua trama inexpiável e as crianças públicas expectantes a mulher frígida de sardas estrelares sabem que o reflexo é a última aparição do corpo e com um dedo estendido procuram o seu complemento mergulhá-lo nas profundezas do seu retrato fluvial provar a matéria fundamental de tudo o que habita Não conhecerás o fogo arder enquanto não vires a tua casa a arder arder não como quem chora pelo fim do império como um farol abandonado depois da grande seca nem tão pouco como quem aguarda o regresso da barbárie mas como que encontrou nos ovos das baratas ecos de uma civilização demasiado c-o-n-t-e-m-p-o-r-â-n-e-a até porque como assombrou Pirandello: a civilização é a barbárie e os corpos incinerados pelo esquecimento os portos que foram dourados como templos a aprender a devoção pelas lágrimas são nem já a pompa triunfante da guerra a exterminação dos gentios Não conhecerás o fogo * aguardando numa frígida paragem de autocarro a vinda da paixão e Hopper desenhando com malícia a magreza do espaço a renúncia deste à transcendência as costelas com saliências de fome a sua face convalescendo no deserto há aqui como que uma razão em falta um motor esbaforido contra os tambores da carne ameaçando colar-se nos pulmões agrilhoá-los de sentido ter no cabo da navalha um povo a arder e se a besta estouvada chorasse enfim as suas lágrimas na minha testa não teria mais consolo a morte. |
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Abril 2021
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