Silêncio
Mariano, 27 de Junho 1916 Conheço uma cidade que todos os dias se enche de luz e nesse instante tudo se encanta Eu parti certa noite No meu coração o estremecer das cigarras continuou Da branca embarcação eu vi a minha cidade desaparecer e deixar um enlace de luzes por um momento no ar turvo suspensas * Eterno Entre uma flor colhida e a outra dada o inexprimível nada * Calma As uvas estão maduras, o campo lavrado, A colina desprende-se das nuvens. Nos espelhos empoeirados do verão A sombra caiu, Entre dedos incertos O seu brilho é evidente, E distante. Com as andorinhas voa A última angústia. * Últimos Coros Para a Terra Prometida 27 O amor já não é aquela tempestade Que no fulgor da noite Ainda há pouco me prendia Entre a insónia e o frenesim, Luz de um farol Para o qual o velho capitão Calmamente navega
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I
a língua mole para palavras duras feito pedras que vêm da goela como um trem que parte túneis na escuridão do silêncio como no papo de aves que cantam na moela a pedra cisca e da faísca cerze do breu o novo dia um canto de pássaro num galho anoitecido é mole para adivinhar as formas brutas ou suaves das coisas ditas ainda não ditas e meditadas ou abruptas como um tiro de fuzil diante do azul de um céu sem nuvens a língua como um morto pronto pra ressuscitar sem nódoas e úmida dar ao ar sua parte mais avara, a árida palavra feita de deserto e desespero oásis sempre prometido ninho de ovos gorados a garganta com suas falsas gemas, apenas luz sobre vidro um estratagema contra a morte que nasce do oco da boca quando esta nada mais está dizendo * II são duras as paisagens são paulo é de concreto as árvores são verdes por fora por dentro já o inseto rói e tronco e pássaro se anunciam na vertigem rente ao presente mesmíssimo desse instante em que observo cada objeto é de aço trazido em vagões de aço em trilhos de aço por homens de ossos frágeis de baço inchado homens e mulheres de sabão em quase tudo derretidos perseguidos pela miséria de então do não que é essa cidade como uma atitude a altitude de suas torres sangrando olimpos comendo almas corroendo nomes assassinando deuses * III tudo transita as setas rasgam o ar sem destino as autoestradas estão vazias e o céu sem jatos os relatos não cobrem colinas e as mãos sem anéis se desquitam do presente: tudo se transforma, se não devagar de repente. * IV os dias se repetem é a mesma chuva na janela e o mesmo poema só não para jaime ovalle mas para outro amigo os amigos são os mesmos e também morrem os poetas de causas banais não de luz ou de palavra engasgada ainda nos recordamos do que amamos e perdemos até que não sejamos mais nem nosso nome na pedra os poemas se repetem não com as mesmas palavras mas com as mesmas escassas ideias * V espero as noites para ver no breu as coisas que amo: sem luz as coisas não que se alterem antes se revelam se despem como você se despe numa cama simples e cabe todo seu corpo seu tronco liso seus dedos manchados da terra do quintal assim gosto de contemplar o que em mim é mais do que coisa no corpo filtrado pelo suor e aquecido pelo sangue tudo em alquimia se traduz em nova anatomia, é no escuro que entendo o silêncio é na mudez das formas limpas que minha luz se acende -
trouxe um punhado de figos de filhos agarrados ao meu corpo pousei-os prudentemente na fruteira do meu crânio pensei-os dois a dois, benditos sejam. Amor Líquido Brilho Eterno de um Amor Líquido Emocionado Juízes na Internet
Manual de procedimentos de G. Stein
Deseja interromper o galopar da bolsa. Humanizar os accionistas. Pô-los diante de um espelho e dizer: é este o rosto da insegurança. Deseja mostrar-lhes um poema, dizer: teu valor enquanto indivíduo supera aquele definido pela vindima. Não, melhor: teu valor enquanto indivíduo não corresponde à colheita do teu esforço. O fado não é ditado pelo sabor dos frutos que carregas às costas. Despir os accionistas da tradição do capital, mostrar-lhes a beleza do incomensurável. Deseja enfiar uma flor na boca de uma máquina, esperar que se engasgue com as suas próprias lágrimas. * O desaparecimento de V. Larbaud O menino de ouro era filho de um grande senhor de ouro, que por sua vez era filho de um antigo conde dourado. Ou seja: o menino de ouro vinha de uma família de ouro, e era ele próprio uma figura de ouro. Para que não houvesse espaço para dúvidas, todos os aldeões, nos seus tempos livres, esfregavam-no bem esfregado. Poliam-lhe os caracóis loirinhos. As mãozinhas delicadas de menino de ouro. O menino de ouro estava destinado a ser grande e todos os órgãos camarários quiseram garantir, desde tenra idade, que o menino chegaria aonde tinha de chegar. Afinal de contas era herdeiro de uma ilustre dinastia dourada! Porém, algo terrível aconteceu, algo que ninguém estava à espera. O que aconteceu foi que, de tanto ser polido, o menino de ouro começou a sofrer uma malfadada erosão. Numa bela manhã de primavera, acordou e apercebeu-se que já não existia. Com tanta polidez, o menino de ouro extinguira-se. Passara a ser nada. Eis o que acontece aos meninos de ouro quando são demasiado polidos pelo público da sua aldeia. * A. Świrszczyńska contempla a rua Todos querem ser janela. Algumas exibindo as cenas mais atrozes dentro. A contemporaneidade chegou com o fim das persianas. * Uma tarde de limpezas com C. Pavese É preciso arejar a casa. Esta casa onde dormiu gente imunda. Esta casa agora por sinal abandonada, sem móveis, sem retratos, sem coisas, sem memórias mas com um cheiro a bafo ignóbil. É preciso abrir-lhe as janelas e que a rua a invada. Que me perdoem os antigos inquilinos: é preciso arejar a casa. As divisões bafientas, uma humidade vergonhosa que cheira a imagens do passado. Eis é um cheiro difícil de tirar (o cheiro do passado). Um cheiro ainda mais difícil de tirar: o cheiro do passado que não aconteceu. Uma casa sem passado, porém, guarda um potencial. O potencial do princípio, que, ao contrário do que muita gente diz, é bem melhor que o potencial da renovação. O princípio é único, o começo é único, e a casa arejada, já sem restos de passado (de um passado não acontecido), é um campo oco que nos convida para a iniciação. É preciso arejar a casa, para que esta possa hospedar um novo significado. * A. Rimbaud aprende a lidar com o sucesso De cada vez que abria a boca ouvia uma ovação. Foi assim que o silenciaram. |
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Abril 2021
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