A Bacana comemora neste mês de março o primeiro ano de existência e convida para a sessão de lançamento da revista "A Bacana. Poemas Reunidos I".
Poderão encontrar textos de Ágnes Souza, Alice Vieira, Ana Bessa Carvalho, André Edson, Bruno Nascimento de Abreu, Bruno M. Silva, Carla Diacov, Chrischa Venus Oswald, Francisca Camelo, Ismar Tirelli Neto, J Carlos Teixeira, José Pedro Moreira, Jussara Santos, Laís Araruna de Aquino, Luís Quintais, Luiza Nilo Nunes, Mafalda Sofia Gomes, Matheus Guménin Barreto, Miguel Abalen, Otávio Campos, Paulo Pais, Sergio Maciel, Stephanie Borges e Tatiana Faia. Contaremos ainda com a apresentação de Luca Argel. A festa é no dia 31 de março, pelas 16.30h, na livraria Flâneur no Porto, Portugal.
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para bianca
os quatro cadernos não pautados exilados na minha estante desconfigurados em notas borradas grafite cego em palavra sem casa anatomia das flores impressa em branco na capa escura, rosa, azul, verde heléboro, lírio, lobélia, crisântemo acantoados no ranço [é agora que ouço o teu melanoma timbrar incompreendido] a desafinar a terra espichando pétalas a dançar no céu feito gravetos ainda que não existam feixes de luz em que se possa encontrar espumas enfeita a tua imobilidade a engenhosidade do teu lastro a compressa fria dos dias separar o sangue das contas misturar a face no orvalho não há esperança em coisas compridas tece em linha costura as parte das tuas partes, garota é em sóis impossíveis que você enxerga é ali que a tua sombra galga cavouca a tua enchente sossega a tua jaula arrefece em teu peito a linguagem das tuas marcas não meça a inconcretude, menina você é a tua própria lápide. * não consigo mais acreditar em constelações em planetas distantes orbitando cidades sem luz. vírgulas e parágrafos e letras e pontos de interrogação a radiografia de um texto metafórico sobre o movimento dadaísta me mantém doente. tenho a impressão de ter estabelecido nós sistemáticos enrubesço com o mínimo artístico com a irrelevância. o degradante me converteu o sujo me expôs. quero revitalizar a minha incongruência tudo não é e deixou de ser. resvalo na autocomiseração. não ligo. não importa a métrica e a sonoridade de um poema. não importa a revolução que você planejou. não importa a complexidade lexical do teu vocabulário não importa o livro que você recomendou não importa o mapa que você traçou. não importa. não verto mais nada. * meu corpo é uma cordilheira cretina duas placas tectônicas que regressam do encontro um avião voando a oitenta mil pés sem o teto a estrutura de um prédio em decomposição um pedaço enorme de terra urrando por reforma agrária crise hídrica nas zonas industriais do peito um pássaro com duas pedras cravadas na asa direita cinco mendigos pedindo esmola na pedro ivo chacina numa tarde de verão na monsenhor celso hecatombe de sóis envelhecidos cardume que se perde dentro duma cachalote um funeral de artistas de rua irène jacob fumando um cigarro em a dupla vida de véronique deleuze sentado discutindo com foucault numa sauna a possibilidade do suicídio na lituânia três tristes tigres devorando guillermo cabrera infante a disposição histórica em destruir amores silenciosos uma fronteira de dez mil quilómetros entre a minha incapacidade de compreender silogismos e a sua maneira de interpretar o existencialismo em kierkegaard. Reforma antecipada
Na quarta-feira, João tropeçou na sala de aula, aterrando com estrondo aos pés do estudante que mais insultara ao longo do semestre. No dia seguinte, vencido pela velhice, por um aterrador sentimento de ter perdido parte das capacidades físicas requeridas para a prática de tortura em ambiente académico, telefonou ao chefe do departamento e, com a ternura que lhe era conhecida, despejou uma torrente de impropérios que teve como corolário a demissão e o pedido de reforma antecipada à segurança social. Odiado pelos estudantes, rejeitado pelos colegas de profissão, o professor agora jubilado virou-se para os livros, leu e escreveu até esgotar as leituras e os temas sobre os quais escrever. Este era animal de primeira importância no reino da selva universitária, conquistara a pulso os territórios da literatura e da semiótica, conferenciara inclusive sobre os cigarros de Umberto Eco. Depois de existência tão fecunda, faltava-lhe a morte, mas nem esta o queria para amigo. Solteiro, ainda com amor para dar, crendo que seria profícua a regular convivência com senhora educada, que lhe acrescentasse asseio e aprumo, João virou-se para as mulheres. Casou-se num estalar de dedos. A esposa, Márcia Marreca, catedrática angolana pescada numa boate de província, aquietou-lhe a alma e o corpo durante breves semanas, as suficientes para que o excelso professor concluísse que ainda não era aquilo, que a procura não terminara. Roberta Latina veio a seguir. Maria Lampreia foi a terceira. Jénifer Remexida, empregada de limpezas que vira oportunidade no casório com titular de reforma dourada, foi a quarta e última mulher que se lhe atravessou no caminho. Certa vez em que seguia o ritual de se barbear ao ritmo de tango argentino, ao mesmo tempo que desfechava frases de autoengrandecimento, tais como és o maior, aqueles pacóvios não sabem o que perderam, como tu não há mais nenhum, nem as fêmeas chegam para ti, o intelectual foi surpreendido por um telefonema. Do outro lado da linha, uma voz cavernosa, democrática, murmurou que chegara o tempo, que Deus não lhe concedia nem mais um sopro. Era a morte, a legisladora. * O semeador de tempestades Platão, pescador de dilúvios, mais do que de peixe, virou figura pública a 14 de abril de 1996, ao aparecer nas manchetes dos jornais de referência como o belzebu humano que estropiara e degolara, por esta ordem decrescente de raiva, a sogra e a esposa. Na tarde anterior, arribara em casa acartando um balde vazio, uma cana de pesca e uma cólera trazida por duas horas de frio, granizo e aterradoras ondas que chocavam contra as rochas e refluíam, não sem antes encharcarem o pescador sentado. Platão padecia de milenar enfermidade, o ciúme. Havia sido casado antes, na década de oitenta, com Rute, manicure, e mais tarde, durante ano e meio, com Patrícia, louca varrida, dessas de matar o macho à estalada, que ganhava a vida percorrendo a região com carrinha Toyota atulhada de roupa unissexo. Ambas o tinham enganado. Margarida, actual esposa, seguia semelhante, pecaminosa, via. Toda segredos e cochichos. Telefonemas secretos. Dois meses e meio sem fazer amor. Ele chegava-se a ela na cama e desprezo, chega para lá, tens os pés frios. Ele investia em flores e lingerie, marrava em cartas de amor, forçava a cordialidade, multiplicava os gestos de galã, mas Margarida, perdida para o demo, reagia com subtis esgares, abúlicos sorrisos, exclamava um ah, obrigada, dizia que querido, estampava-lhe beijo na testa ou na bochecha, e tornava às secretas cogitações que a apartavam do casamento. Nessa dita chuvosa tarde de vulcânicas iras, Platão escancarou a porta de casa, rasgou as mulheres à naifada, uma por supostamente o enganar, a outra por ser mãe de quem era – e por lhe inspirar uma náusea ou tontura combinada com vontade de vomitar – e entregou-se, seguro de ter feito o melhor para todos, especialmente para o bebé por nascer, na esquadra policial, confirmando a lei da atracção que diz que somos aquilo que pensamos. mais do que tudo
crer no ofício infunde-se a devastação onde nascem as horas onde os contornos do vento abraçam os penhascos mais do que tudo saber porque nascem os Homens e desenhar nesse ofício uma porta para a liberdade * dos nómadas quero o bom tempo e as searas o ínvio das ladeiras quero as mãos como cavalos hirtas de astúcia os dedos como caminhos longos fundas poças de água quero as manhãs de relento sob copas a chuva sobre as pedras o cavalgar dos sentidos peço ainda o verão e os bosques o profundo segredo dos lagos os vulcões e as unhas * (dores de parto) - Dai-lhe uma hora rasa perguntai-lhe a ternura de alguns ventos a generosidade do mar e que de olhos enxutos ela seja capaz de elencar duas ou três noites de vigília coração aberto e agarrado à vida como praça ao sol * neste lugar de chuvas ganha a nuvem forma sórdida rabujam os pássaros palavrões do mundo caminhos de punição à margem do gólgota as glicínias vão medrando beijam os muros olhos postos na terra nuas da sua circunstância depois o Inverno volta, fundeia a sua caravela junto aos meus tornozelos e com[o] Ele também a poesia chega em silêncio * em que face do mundo amanhecemos em que terminal deixamos inscritos os nossos nomes a que paisagem fina de poeiras regressamos sem bagagem ilesos na densidade inexacta dos aeroportos? em cada cais sujo me farei inimigo do abandono em cada cume levantarei punhados de terra a tarde inteira na procura disciplinada da luz brandura dos seixos depois pernoito em ti. na cadeira dezasseis a minha nuca afundada no leito das tuas coxas os meus muros prestes a ruírem a cada zénite como se fora esse - não outro - o país a que pertenço |
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Abril 2021
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