13/2/2019 0 Comentários A Aranha A aranha enorme e obscura estava escondida debaixo da cama, enquanto os dois corpos se entrelaçavam sobre um colchão ortopédico – e ouvia-se o ranger de dentes, e os gritos abafados que a união entre pessoas que se desejam proporciona.
A cama era de madeira negra, antiga, talvez resistente igual ao cinismo, igual ao frio da madrugada, igual ao desprezo ao telefone. Era uma cama que não se desmontava, precisava ser carregada com cuidado, assim como a aranha, assim como o que é passível de perder a vida a qualquer momento. A aranha permanecia imóvel, alheia, como se possíveis presas ali no quarto não lhe chamassem a atenção para a fome que se descortina ao que também é vivo e invertebrado. A aranha arfava discreta, impercebível aos olhos distraídos de qualquer pessoa. Ela era impenetrável e grotesca, como se caminhasse lentamente sobre o corpo de um bebê. Os ruídos e movimentos bruscos da grade da cama provocavam nela movimentos milimétricos. Era durante a noite que elas caçavam, porém alguma coisa a impedia e a atiçava gradativamente. Mas sobre a cama havia um homem nu e uma boneca inflável. Sobre a cama havia um homem de sessenta anos, grisalho, solteiro e com o colesterol nas alturas. Ele enfiava a língua no orifício redondo, pintado de vermelho: a boca daquela mulher de plástico. No vai e vem do desejo, ele sussurrava e imaginava uma mulher real pronta a satisfazê-lo, calada, de olhos fechados, uma mulher estática como bonecas de porcelana – mas nunca como aquela boneca desengonçada. Era a compensação difícil para si mesmo, a tara pós-moderna, o ritual secreto da solidão. Então a aranha, talvez incomodada ou curiosa, escalou lentamente o pé da cama até encontrar o colchão, e ali se manteve intacta, em contraste com o lençol branco demais. O homem adormeceu após o gozo verossímil. A caranguejeira se aproximou do homem – talvez atraída por alguma fagulha de desejo? O corpo do homem sem pelos seria o terreno propício para que ela, sem ser percebida, atingisse o seu objetivo. Um objetivo íntimo das aranhas. E o objetivo da caranguejeira era posicionar-se sobre rosto dele, que ao abrir os olhos – por um milésimo de segundo –, estava prestes a gritar de horror. Porém quem havia se horrorizado milésimos de segundos antes foi a aranha, que lhe fisgou a pupila antes mesmo que ela se dilatasse. O homem arrancou a aranha do rosto, esmagando-a com as mãos, gritando de desespero. Os pelos urticantes penetraram em suas narinas: ele estava prestes a sufocar. O coração batia cada vez mais rápido, a dor era insuportável. O homem caiu de joelhos ao pé da cama, que se desmontou, barulhenta, inesperadamente, igual a um vulcão em erupção na ilha de Java. Vulcão em formato de cone formado pelo magma extravasado. O magma daquele homem seria o próprio coração impedido de ultrapassar sua caixa torácica. Mas ele não estava morto. Sobre o rosto da boneca inflável, outra aranha, uma bem menor, talvez faminta, talvez imitando o comportamento da mãe – ou apenas horrorizada.
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Fevereiro 2019
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